(Há quem diga que santos da casa não fazem milagres e de facto os meus aparecimentos públicos cá pela região Norte contam-se pelos dedos. Há dias, quando tentava em vão reorganizar a minha secretária caseira, dei com um exemplar do Diário de Notícias de há já bons anos em que no âmbito de uma entrevista que o jornal me fez, com direito a fotografia no túnel da Ribeira, ainda sem máscara para me defender daquela poluição, o jornalista puxou para título uma afirmação minha que era “o Norte é um mito”. Não me entusiasmo de todo com correlações, mas como diria o outro “que las hay, las hay …”. Agora sem brincadeira, inocente embora, o Instituto Politécnico de Viseu, por iniciativa da Dra. Luísa Augusto, Presidente da ADIV - Associação para o Desenvolvimento e Investigação de Viseu, teve a gentileza de me convidar para participar numa iniciativa designada de Compromissos pela Sustentabilidade na tarde do próximo dia 6 de março de 2023, https://www.facebook.com/ipviseu. Nos próximos dias, incluindo hoje, trago para o blogue algumas notas escritas de procrastinação preparatória dessa intervenção.)
DO LOCAL AO GLOBAL: OS DESAFIOS DA SUSTENTABILIDADE
O tema
Em boa medida, a escolha dos modelos de desenvolvimento que dão corpo às aspirações das sociedades democráticas, interpretadas pelos programas das forças políticas organizadas que se apresentam regularmente ao sufrágio eleitoral, deveriam resultar de um processo essencialmente endógeno. Claro que na formação dessas escolhas entram questões do foro externo como a escolha de um posicionamento no mundo, competitivo e afirmativo da singularidade dessas sociedades ou a resposta a desafios globais que, por mais pequena que seja a dimensão dessa sociedade, suscitam a necessidade de resposta interna. Assim, canonicamente, o ambiente externo é considerado, mas seria a partir de dentro, ou seja, endogenamente, que a escolha do modelo de desenvolvimento seria concretizada.
Vivemos tempos em que este simples princípio da escolha livre dos modelos de desenvolvimento das sociedades democrática é cada vez mais “fuzzy”.
Uma das razões que explica a nebulosidade com que este princípio é hoje aplicado está relacionado com o tema desta intervenção. Vivemos hoje à escala global e obviamente à escala europeia desafios que fazem com que o ambiente externo assuma uma importância total que o princípio atrás enunciado parece virar-se de pernas para o ar, sacrificando a endogeneidade à força dos desafios externos aos quais temos de responder. E temos de o fazer por questões de sobrevivência. O princípio da livre escolha das soluções permanece de pé, mas essa liberdade projeta-se agora na escolha das melhores opções de resposta a esse desafio, nunca ignorando obviamente a valia dos nossos recursos e a melhor maneira de os combinar de modo a assegurar no mundo alterado a nossa singularidade e diferenciação.
Quanto mais livres e autónomos formos na escolha dessas formas de adaptação mais o modelo de desenvolvimento que seguimos poderá resultar de uma construção coletiva, no qual o maior número possível de grupos sociais e indivíduos possa reconhecer-se.
Creio que o desafio da sustentabilidade pertence a este universo.
E quando falo de sustentabilidade estou a concentrar-me essencialmente na dimensão da sustentabilidade ambiental. Que me perdoem os entusiastas da extensão e alargamento do conceito às dimensões da sustentabilidade económica e social, e não ficaríamos por aí, pois o institucional e cultural estariam aí à porta. Mas em meu entender essas extensões e alargamentos não têm comparação possível em termos de consistência com o que tem sido possível alcançar em matéria de sustentabilidade ambiental. É por aí que me movimento e é nessa perspetiva que vou aqui encarar os desafios da sustentabilidade.
Recorrência e agravamento
De repente, ficamos submersos numa catadupa sucessiva de abordagens e conceitos, que por vezes se atropelam e até conflituam entre si, neste afã de inscrever a questão ambiental na agenda do desenvolvimento – desenvolvimento sustentável, mudança climática, transição energética, descarbonização, Green Deal, economia verde e esverdeamento da economia, DNSH (Do Not Significant Harm), eficiência energética e o que virá mais por aí.
Para alguém como eu cuja matriz disciplinar é o desenvolvimento, a sustentabilidade ambiental não é mais do que uma tentativa de qualificação do desenvolvimento, como se a sua globalidade não fosse suficiente para se afirmar. Crescer ou simplesmente assegurar a melhor qualidade de vida possível aos cidadãos, permitindo que estes com a sua participação cívico-política expressem os valores que deverão integrar essa dimensão da qualidade de vida.
Temas aparentemente novos, talvez hoje mais prementes e intensos nos desafios que provocam, mas já presentes noutros tempos, quase como que se tivessem transformado em temas recorrentes, aos quais cada geração atribui importância específica diferenciada. Nessa perspetiva a geração da Greta Thunberg dedica ao tema uma atenção incomparavelmente mais intensa à que a minha geração na sua idade dedicava. Refletindo obviamente o agravamento do contexto global.
Mas, recorrendo a um flash-back de grande amplitude na minha memória, quando em 1972, ou seja há 50 anos e picos, preparava uma das minhas últimas disciplinas do curso de Economia, a cadeira de Política Económica, recordo-me que a finitude dos recursos estava no auge do debate e lembro-me de discutir entusiasticamente com colegas o chamado Relatório Meadows do Clube de Roma onde se discutia já a necessidade do crescimento económico arrepiar caminho para gerir a finitude dos recursos não renováveis. Desde então até aos nossos dias esse embate entre os cenários mais catastrofistas e os que exageravam a capacidade endógena do capitalismo se regular e afinar uma utilização inter-geracional mais responsável dos recursos não mais deixou de sistematicamente se reinventar, até se transformar hoje numa dimensão vital de sobrevivência do capitalismo.
E assim, depois de alguma procrastinação ao longo destes 50 anos, colocámos de novo na agenda do debate temas como o do “decrescimento” (degrowth), que não é mais do que uma forma moderna do egoísmo crónico do mundo ocidental e desenvolvido, que continua como sempre a querer resolver os seus próprios problemas sem entender que é à escala global que ele tem de ser colocado e gerido.
Mas o que é que o contexto atual tem de particular e específico para discutir criticamente o tema da sustentabilidade ambiental e da reconsideração dos modelos de crescimento e desenvolvimento?
A singularidade do contexto atual
Destacaria três dimensões, a primeira das quais não irei aqui abordar pois ela está suficientemente divulgada e a cada dia conhecemos mais evidência sobre a sua irreversível gravidade.
As três dimensões são:
· A irreversibilidade dos efeitos da mudança climática;
· A disrupção da globalização;
· O mistério do progresso técnico e da produtividade.
Como já o referi, a primeira dimensão é hoje tão óbvia que até o negacionismo mais belicoso e retrógrado tem dificuldade em ocultar evidência. Os efeitos da mudança climática estão tão divulgados e são tão notórios que uma dimensão mais é necessário cautelar – a mudança climática não pode fazer passar para segundo plano a questão da biodiversidade e da sua rigorosa preservação. O grande passo e desafio estará na necessidade de ir além da ponderação dos sinais e equacionar de uma vez por todas a reconsideração de todos os processos de produção, incluindo o agrícola, e dos nossos modelos de vida e de consumo (a vertente mais difícil de incentivar e claramente a mais dolorosa para o modo de vida ocidental afluente).
Vou concentrar-me nas duas restantes dimensões que me parecem mais apropriadas para uma sessão como esta.
A questão da disrupção da globalização traz a este processo uma nova indeterminação, que é ilustrada pela catadupa de novas terminologias com que hoje trabalhamos – deglobalisation, slowbalisation, cadeias de valor globais truncadas, encolhidas ou em revisão total, nearshoring, friendly-shoring, num sem acabar de olhares sobre o tema da disrupção global, iniciada antes da pandemia com a estagnação da extroversão mundial, fortemente impactada pela pandemia e ainda mas fraturada com o novo ambiente geopolítico decorrente da invasão russa da Ucrânia.
A questão é relevante pois o tema da sustentabilidade ambiental só tem abordagem possível no quadro global com os mecanismos de disseminação do conhecimento a funcionar plenamente a nível global e isso pode estar ameaçado se não prevalecer uma perspetiva sensata da reconsideração da globalização.
A importância de integrarmos a disrupção da globalização e das suas possíveis saídas na equação da abordagem à crise climática, energética e ambiental em geral nem sempre é reconhecida pelos mais apaixonados especialistas, ativistas ou simplesmente interessados e participantes neste debate. Mas as saídas possíveis para esta encruzilhada ambiental em que nos encontramos serão substancialmente diferentes consoante as operemos num mundo global regulado mas relativamente fluido ou se, pelo contrário, isso acontecer num mundo fraturado, desregulado, presa fácil dos populismos de toda a espécie, organizado em blocos que conflituam entre si e insensível aos desníveis de desenvolvimento causadores em última instância dos fenómenos migratórios mais intensos e dramáticos.
Questões como, por exemplo, a opção pelo decrescimento ou pela procura de novos processos e modelos de crescimento terão uma abordagem substancialmente distinta consoante os perspetivemos do ponto de vista da nossa situação privilegiada de ocidentais desenvolvidos ou segundo as lentes e interesses dos menos desenvolvidos, sejam eles o dos países menos desenvolvidos ou dos mais pobres cristalizados nas nossas sociedades afluentes.
A disrupção da globalização e do que isso representa em termos de panorama e tendências da negociação internacional é uma das razões importantes que explicam os acordos climáticos bastante mitigados a que temos chegado e também a relativa falta de ambição para abordar a não menos importante questão da preservação da biodiversidade.
Como é óbvio, já não bastavam os sintomas de interrogação que a globalização vivia antes da crise pandémica e esta última e a fratura geopolítica que a invasão russa da Ucrânia e o modelo de ressurgimento czarista-imperial de Putin veio determinar acabaram por gerar um panorama de indeterminação estrutural que não sabemos bem como o mundo vai dele sair, se com danos irreparáveis na preservação da espécie humana, se passando pelos pingos da chuva até a uma próxima fonte de disrupção.
Numa relação cujo conteúdo ainda não está plenamente estudado, a disrupção da globalização atrás sugerida vem a par com o que poderia designar de “mistério” ou “paradoxo do progresso técnico”. Em termos simples para o auditório entrar facilmente no tema, o mistério ou paradoxo consistem na evidência de uma evolução contraditória – numa época em que todos nos deslumbramos com as realizações que nos chegam em matéria de inteligência artificial, robotização, automação e transformação digital, assistimos em paralelo a um crescimento anémico da produtividade como já não víamos há muito tempo e à popularidade de conceitos como o de “estagnação secular” que importámos dos anos 30. Simultaneamente, a investigação recente sobre o modo como a investigação científica tem gerado resultados mostra-nos, não menos surpreendentemente, que é cada vez mais difícil produzir ideias com valor económico (inovação). Por outras palavras, a produtividade da própria investigação tem caído de forma significativa. Por ideia com valor económico produzido são necessários cada vez mais investigadores e também curiosamente a propensão para os artigos científicos invocarem pensamento de outros, lá atrás no tempo, tem vindo também a diminuir.
(A procrastinação segue nos próximos dias).
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