Interesse Privado, Acção Pública: ESTARÁ O SOFTWARE NO SEU MOMENTO GUTEMBERG?

quarta-feira, 29 de março de 2023

ESTARÁ O SOFTWARE NO SEU MOMENTO GUTEMBERG?

(Paul Kedrosky &Eric Norlin) (1)

(Tenho-me esforçado na minha reduzida margem de intervenção por tentar mostrar que os jargões hoje generalizadamente utilizados de transformação ou transição digital estão muito longe de representar as mudanças em que o mundo está envolvido e, atendendo à nossa abertura e exposição globais, que nos vão tocar inevitavelmente à porta. A revolução tecnológica em curso tem-se manifestado por impulsos de que a robotização e a automação já foram os presumidos motores, mas que agora tem a inteligência artificial (IA) a liderar esse impulso. A IA é uma revolução excelente para explicar o meu ponto de compreensão necessária da relação existente entre mudança tecnológica, inovação organizacional e melhoria de qualificações/competências, que procuro descrever no esquema imediatamente abaixo, um pouco tosco, mas é artesanal. Além disso, o conhecimento dos rumos dos efeitos que iremos poder associar à IA estão nos primórdios do conhecimento. No post de hoje, trago o contributo de dois tecnólogos americanos que apontam um dos grandes efeitos surpresa da IA, nada mais nada menos do que os concretizados no interior do próprio mundo da tecnologia, afetando o seu coração, a indústria e os profissionais de software. Agarrem-se bem pois termos navegação altamente instável.)

A primeira nota prende-se com a razão pela qual os efeitos concretos da inteligência artificial estão ainda nos primórdios do conhecimento. Em meu entender, conhecemos mal, ainda, a relação entre a mudança tecnológica propriamente dita (a IA nas suas diversas manifestações) e as adaptações ou revoluções organizacionais com as quais tenderá a coevoluir. E, por isso, tenho defendido cautela e precaução no modo como se antecipam as mudanças de qualificações e de competências necessárias, já que será da relação IA-organização que decorrerão as principais alterações em matéria de postos de trabalho, de qualificações e de competências para os preencher.

Por isso, é natural que durante este percurso ainda fortemente indeterminado tenhamos que gerir e acomodar algumas surpresas, inesperadas ou não consoante o modo como acompanhamos ou estamos embrenhados nestas questões.

O contributo que trago para o post de hoje tem origem em dois quadros da SV Ventures (base em Singapura), Paul Kedrosky e Eric Norlin e falam de um momento Gutenberg para a indústria de software. O tema é sugestivo e coloca o software, neste caso a manifestação de IA baseada nos Large Language Models (LLM) tipo ChatGPT, cuja aplicação e resultados tem inundado a imprensa internacional, no coração da sua própria disrupção. Por outras palavras, a IA prepara-se para arrasar os principais elementos de organização da indústria de software, programas, programadores e software houses. É como se dentro de um dado sistema se formasse um elemento cujo desenvolvimento tenderá a revolucionar o próprio sistema.

Entre outras minudências, os softwares tipo ChatGPT podem ser interrogados e fornecer códigos de programação, com impacto significativo nos profissionais de programação.

Dois elementos interessantes que os quadros da SVK (2) nos trazem.

Em primeiro lugar, os elementos conhecidos de relação entre avanço do conhecimento e redução dos custos de produção de software levam os autores a falar de uma transição irreversível entre tempos de ciclos de dimensão para outros em que tudo muda e a cada vez mais velocidade. O gráfico que abre este post anuncia que o próximo colapso de custos tecnológicos irá acontecer no universo do software.

Em segundo lugar, o gráfico abaixo tem uma representação simples de dois eixos em que as variáveis são a previsibilidade das mutações e a sua gramaticalidade, ou seja, neste último caso a existência de regras que possam comandar os processos de automatização e de aprendizagem inteligente que os ditos ChatGPT permitem concretizar. No quadrante de efeitos mais devastadores, os engenheiros de software estão em companhia de outros profissionais, tais como gente que trabalha no domínio da fiscalidade, dos call centres e dos contratos.

Ou seja, navegação instável e que recomenda alguma precaução no desenho de novas qualificações.

Para memória futura.

(1) https://skventures.substack.com/p/societys-technical-debt-and-softwares

(2) https://opengovsg.com/corporate/202023658M

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Interesse Privado,
Acção Pública

A ideia e os princípios que a enquadram

1. Porquê um blogue?
A ideia da criação de um blogue resulta de uma convicção que há muito tempo vem sendo amadurecida por alguns de nós a partir da nossa experiência de vida activa enquanto académicos, consultores ou gestores públicos ou privados. Essa convicção alimenta-se de duas forças que convergem nesta conjuntura histórica particular do País e do mundo: por um lado, o conhecimento que temos produzido e acumulado é suficientemente rico para merecer formas alargadas de disseminação; por outro lado, os tempos que nos envolvem exigem cada vez mais que pensemos por nós e que não deixemos que outros apropriem essa função.
Para aqueles de entre nós que têm dedicado parte da sua vida ao crescimento da Quaternaire Portugal, Consultoria para o Desenvolvimento S.A. (QP), a decisão de projectar o nosso pensamento na blogosfera corresponde, assim, ao velho princípio do profissional que reflecte sobre a sua própria prática (reflexive practitioner) e que pretende colocar essa capacidade reflexiva ao serviço do debate e da intervenção cívicos. Assume assim especial significado o facto de o blogue surgir da dinâmica de experiência de uma empresa privada e da rede de conhecimento que a sua actividade tem proporcionado; entendemos esta singularidade como uma manifestação de responsabilidade social e de transparência.
Colocamo-nos, portanto, na corrente da aprendizagem colectiva, formalizando conhecimento a partir do cruzamento das nossas referências teóricas, conceptuais, políticas com a experiência da intervenção sobre diferentes caminhos do desenvolvimento de territórios, organizações, sectores e pessoas.

2. Porquê este tema orientador?
O fascínio pelo tema que o título do blogue sintetiza vem, essencialmente, dos domínios de intervenção em que a maioria de nós tem trabalhado, nomeadamente no âmbito da QP: planeamento (estratégico, territorial, sectorial, urbano), ordenamento do território, cultura, emprego, formação e desenvolvimento social, políticas urbanas, avaliação de programas, projectos e políticas públicas, dinâmicas económicas nacionais e internacionais.
Em todos estes domínios, temos assistido – ou melhor temos participado numa lógica de investigação-acção – a uma evolução na qual público e privado se reinventam, numa relação de interacção fortemente dinâmica ditada não só pela influência dos movimentos sociais mas também por aspectos de ordem mais geral (a globalização, a evolução dos media, a base moral da economia, entre outros).
Essa permanente reinvenção do público e do privado faz emergir novos princípios e/ou destruir velhos mitos:

A, nem sempre demonstrada, superioridade moral do público face ao privado;

A pretensa maior eficiência do privado face ao público, que perde evidência segundo critérios mais vastos (como o da sustentabilidade);

Os efeitos reais e heterogéneos de privatizações;

A necessidade de redimensionar e reformatar a despesa pública;

O crescimento inclusivo e a consciência das diferenças e do outro;

A transparência e “accountability” da acção pública, com novas formas de participação cidadã e de envolvimento intelectual;

A construção fundamentada de alternativas de gestão macroeconómica susceptíveis de minimizar custos sociais de crises como a actual;

Outros que, decerto, a dinâmica de crescimento do blogue irá colocar no centro do debate.

Tendo por pano de fundo a reinvenção das relações entre o público e o privado, o projecto do blogue visa assim, em simultâneo, intervir civicamente em temas marcantes da sociedade de hoje (nacional, mas não só) e formalizar /disseminar conhecimento sobre a referida reinvenção.
A filosofia do blogue assume neste contexto de preocupações os seguintes princípios:

Assume o debate político, privilegiando espaços não partidários de discussão;

Valoriza a (pluri/inter)disciplinaridade e a fertilização cruzada entre diferentes campos do conhecimento;

Define-se como intérprete da prática profissional reflexiva;

Afirma-se como espaço de aprofundamento dos chamados três DDD – democracia, descentralização, desenvolvimento.

3. Porquê este título?
Decidimos optar por uma referenciação simbólica do nosso objectivo acima elucidado a um pensador que tenha marcado a formação teórica de muitos cientistas sociais e cuja heterodoxia tenha vindo a ser validada pelos desafios dos tempos mais recentes. Após várias iterações, vimo-nos perante dois notáveis economistas do desenvolvimento os seus ensinamentos académicos e de percurso: Albert O. Hirschman e Fernando Henrique Cardoso. E, inspirados na biografia e obra de cada um, seleccionamos as duas boas possibilidades que seguidamente elucidamos.
Ou “virtù”, palavra italiana que, “definida em breve síntese, consiste na capacidade de compreender exactamente toda e qualquer situação de facto, e nela fazer intervir, para modificá-la, a livre vontade humana. De maneira que virtù tanto é a capacidade intelectual de penetrar as situações em sua realidade substancial, quanto a vontade de transformá-las segundo as próprias finalidades.” Palavra que FHC utiliza, no capítulo inicial (“Fortuna e alguma virtù”) de um seu livro recente que é também um testemunho pessoal (A Arte da Política – A História que Vivi), sustentando “a ideia de que a fortuna, ou a sorte, às vezes, precede a virtù, e que o empenho em objectivos pessoais é menos importante do que o ‘abraçar uma causa’”.
Ou "interesse privado, acção pública”, reprodução parcial, em português, do título de um dos trabalhos mais representativas de Hirshman (Shifting Involvements: Private Interest, Public Action) e onde se analisa o carácter cíclico dos envolvimentos em acção colectiva – a arena pública foi uma constante ao longo da sua vida, numa lógica de contraposição a uma lógica de participação guiada por ganhos e incentivos racionais (“interesse”) – e se “defende abertamente que aceitemos as complexidades da vida real em vez de buscarmos teorias ou paradigmas que abranjam tudo”. O mesmo autor que, nos seus últimos livros (A Propensity to Self-Subversion e Crossing Boundaries: Selected Writings), elegeu a expressão “não é necessariamente assim” como o mote da sua obra e o termo trespassing (travessia não autorizada, invasão) como o seu modus operandi.
Razões meramente burocráticas de registo legal fizeram, por nós, a escolha definitiva. Todavia, julgamos dever deixar aqui esta explicação, na medida em que entendemos que ela ajudará também a clarificar a essência do que nos move. Seremos, pois, “interesse privado, acção pública”. Um título que, além de permitir um jogo de palavras – “interesse privado, acção pública” versus “interesse público, acção privada” – que enriquece e diversifica o debate por ele suscitado, convive bem com a literatura (designadamente anglo-saxónica) da ciência política e da economia/sociologia do desenvolvimento, na qual se podem encontrar expressões afins e que poderiam igualmente enquadrar o que pretendemos valorizar.