quinta-feira, 2 de março de 2023

UMA IMPORTANTE REFORMA?

A crer que o primeiro-ministro ainda tenha alguns escrúpulos de coerência, hoje será certamente um dia de alguma importância para ele, especialmente por ser aquele em que ele poderá sentir-se legitimado no sentido de entender que conseguiu alcançar a proeza de limpar sem grandes custos a sua má consciência regionalista. Com a preciosa ajuda de uma ministra empenhada e eficaz para os devidos efeitos práticos, a voluntariosa Ana Abrunhosa (“um político faz o que pode, não faz o que quer”), e a natural cumplicidade dos principais agentes mais direta ou indiretamente (ir)responsáveis, da inexistente Associação Nacional de Municípios Portugueses à ruidosa maioria silenciosa dos presidentes de Câmara, dos necessariamente obedientes presidentes das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR's) aos restantes stakeholders supostamente chamados a envolvimento (porque, estando presentes no terreno, terão uma pretensamente maior intervenção).

 

Confirmei parte do que já pensava e a que aludo sinteticamente neste post ao ouvir ontem o debate havido no programa “Território” do “Porto Canal” entre os comentadores residentes (Cristina Azevedo e Rio Fernandes) e o presidente da CCDRN (António Cunha). Se o leitor se interessa pela matéria, o que tenho de assumir que já começa a ser do foro do caso raro ou de algum tipo de aditividade, recomendo vivamente que puxe atrás a máquina do seu televisor e assista ao que por lá foi dito com tanto de convicção e veemência quanto de doses variáveis de utilitarismo e servilismo, entre a algo emocional mas substantiva lucidez de Cristina Azevedo, a permissiva posição de um Rio Fernandes sempre pronto a coser feridas abertas para agradar a Deus e ao Diabo e a opção de António Cunha por uma “reforma” (já lhe chamou “salto quântico”!) a que diz aderir menos em nome de um ideal perfeito do que de uma dimensão de esperança e de um combate ao imobilismo (e, acho eu, também da preservação do seu lugar e de alguma consequência em relação aos seus compromissos passados junto de quem o escolheu e de quem carimbou tal escolha com a respetiva cruz).




Como já entenderam, estou a referir-me ao facto de ter sido hoje aprovada a nova lei orgânica das CCDR’s, segundo a qual serão para elas transferidas algumas atribuições e competências provenientes de diversas áreas setoriais, embora segundo uma lógica pouco compreensível de “pesca à linha” primordialmente função das dificuldades antevistas de integração, do peso específico dos ministros afetados (vide os parentes pobres que manifestamente são a Agricultura e a Cultura) e das capacidades reivindicativas existentes ou previsíveis, tudo menos segundo uma lógica de pensar maduramente a coordenação interterritorial e daí partir para a sua concretização. Uma lógica que, para ser levada a sério, teria de ser menos precipitada e embrulhada, arrancando designadamente com a definição de uma metodologia de trabalho clara e participada (princípios a presidir à delegação de competências e à integração de serviços, articulação entre níveis e tutelas, movimentação de trabalhadores, entre vários tópicos relevantes) e com o estudo de uma harmonização e racionalização da organização desconcentrada da máquina do Estado (onde ainda continuam a existir os distritos e múltiplas sobreposições de mapas territoriais consoante os domínios em causa), não devendo também ter sido esquecido o fenómeno da enorme concentração centralista dos organismos do Estado.

 

Mas, e volto ao meu ponto de abertura: depois dos truques constitucionais do referendo de Marcelo e da conversa fiada em todos os azimutes que ele há anos nos vai dando sobre a matéria, Luís Montenegro tinha feito um favor a António Costa (a recusa declarada de equacionar e discutir a regionalização nesta legislatura, o que Passos Coelho veio há dias validar em bom, porque em termos mais definitivos) ao permitir que este pudesse encontrar uma forma de ver secundarizadas as suas contradições e dúvidas, suprindo-as pela ideia de o terem colocado perante uma situação em que ficou atado de pés e mãos perante uma vontade regionalizadora (ou falta dela, num quadro em que o arquivamento objetivo dos trabalhos da Comissão para a Descentralização foi o momento da verdade?). E daqui partiu Costa para aquilo que ele melhor sabe fazer: um desenrascanço taticista, em nome de melhorias pontuais a serem central e politicamente avaliadas (pasme-se!) antes de outros passos serem eventualmente encetados (ou não, com grande grau de certeza). E aqui estamos, metidos portanto num “experimentalismo” inconsequente que, procurando enganar alguns crentes e outros tantos tolos e alimentando certas pequenas ambições de poder, visa servir em última instância aqueles que entendem que a instituição de regiões (como as que predominam na quase totalidade dos nossos congéneres europeus) não é caminho admissível para o nosso especialíssimo Portugal. Pela parte que me toca, não obrigado, já dei em demasia para um peditório onde escasseiam mínimos de frontalidade e decência!

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