quinta-feira, 9 de março de 2023

A IMAGEM DO 8-M

 


(Sabemos que em Espanha tudo é mais extremo, mais assumido, mais intenso. Também assim foi o dia internacional da Mulher, data que nos media do país vizinho tem sido coberta pela designação do 8-M. Corroborando a ideia de que tudo é mais intenso, a comemoração de ontem transcendeu em muito a colocação da Mulher no centro das atenções da sociedade espanhola e transformou-se num momento assinalável de fratura na coligação que suporta o governo de Sánchez. Sendo para já impossível de prever qual a dimensão e efeitos efetivos desta rotura, vale a pena refletir sobre as condições que tornaram possível que o feminismo espanhol se apresentasse de novo na rua e no Parlamento dividido, como se ignorasse que a importância dos direitos a valorizar justificaria não a divisão, mas antes uma profunda unidade. Admitir que a sociedade espanhola está madura para conscientemente internalizar para todo o sempre a defesa de tais princípios, desdenhando assim dos riscos do retrocesso civilizacional latentes na sociedade espanhola, representa uma profunda miopia política.

Diz-nos o El País (link aqui) que, apesar da fratura no movimento e na coligação, a presença de ontem dos movimentos feministas na rua (ver acima a imagem da Plaza Cibelles que acolhia uma das fações), nas manifestações que protagonizou, foi mais intensa do que a divisão ocorrida faria pressupor, mostrando desse ponto de vista que, por detrás do choque dos egos, talvez exista uma força de opinião suficientemente forte para acomodar a referida fratura.

Fazer política em torno de temas fraturantes é um risco assinalável e a coligação PSOE-PODEMOS está a provar amargamente desse cálice. Ainda recentemente, a lei relativamente aos transsexuais deu origem a uma enorme perturbação na coligação governamental, perturbação maximizada com a decisão de votar no Parlamento (Congresso de Deputados) a reforma da “ley del solo sí es sí’ precisamente no 8-M com todo o seu simbolismo.

Quando a coligação PSOE-PODEMOS vivia melhores dias, foi aprovada em Espanha, mais propriamente em agosto de 2022 (205 votos a favor e 141 contra) e entrada em vigor em outubro do mesmo ano, a chamada Lei de Garantia Integral de Liberdade Sexual, também conhecida por Lei da Liberdade Sexual ou ainda na sua versão mais popular de lei do "solo sí es sí". A lei foi então apresentada como uma das mais avançadas legislações a favor do direito das mulheres e marcava assim a diferença da coligação na sociedade espanhola. A sociedade espanhola vivia ainda os ecos de uma selvagem violação em grupo nas festas de San Firmín em Pamplona e compreendia-se, assim, a ampla margem de aprovação da Lei

Simultaneamente, a Lei representava um símbolo de afirmação para a Ministra da Igualdade, Irene Montero, mulher de Pablo Iglésias, e membro do PODEMOS com maior notoriedade política no governo de coligação.

Fazendo jus ao caráter errático da governação de Sánchez, é difícil compreender a decisão do PSOE de propor neste momento uma revisão da Lei que, além da complexidade da argumentação jurídica nela envolvida, se traduz numa redução de penas para violadores, o que suscita dúvidas a qualquer um, sobretudo quando a Lei inicial foi apresentada como um exemplo de segura vanguarda jurídica. Recorda-se que a força da nova Lei era exigir o consentimento da mulher e não colocar os critérios de decisão do ponto de vista da força ou violência masculinas. Para complicar ainda mais a trama, a proposta de Reforma da Lei recolheu o apoio do PP e obviamente instalou na coligação um ambiente aberto de rotura, ontem consumada na votação do Congresso de Deputados, precisamente no dia em que as forças de apoio aos direitos das mulheres deveriam estar mais unidas.

Segundo pude apurar, a entrada em vigor em outubro de 2022 da Lei determinou a necessidade de alterações ao Código Penal, com a inclusão de novos delitos não inscritos na lei penal, alargando a diversidade de penas, reduzindo algumas penas e aumentando-as para os crimes mais graves. No quadro da difícil aplicação da Lei, o princípio da retroatividade favorável determinou que para alguns detidos a descida de algumas penas abriu caminho à revisão de processos e a algumas libertações. A argumentação do PSOE para a reforma da Lei residiu no facto de ser necessária uma resposta ao alarme social que suscitou a libertação de alguns dos acusados, com o maior número a verificar-se na Andaluzia com 21 libertações.

O problema é que a reforma proposta pelo PSOE introduz de novo a nuance de distinção entre crimes com violência e intimidação para lograr conseguir aumentos de penas para os casos mais graves, alargados ainda a casos em que a vontade da mulher é artificialmente (álcool ou drogas) influenciada. O que significa na prática regressar ao período anterior à Lei da Igualdade de outubro e assim reduzir a relevância do consentimento da mulher, como expressão máxima da sua liberdade. E aqui começou a rotura na coligação: o consentimento é uma espécie de linha vermelha que a ministra Irene Montero (PODEMOS) se recusa a transpor, mesmo que seja compreensível o propósito do PSOE de combater o alarme social das libertações com endurecimento de penas para os casos de violência e intimidação físicas.

É neste contexto de profundo imbróglio que deve compreender-se a força da imagem que abre este post.

A Vice-Presidente do governo de Sánchez, Yolanda Diáz, que corre por si e que aspira com o seu projeto SUMAR a liderar uma alternativa de esquerda à esquerda do PSOE, enlaça pela cintura a ministra da Igualdade Irene Montero, uns minutos antes da votação que consumou a fratura na coligação e em direção a um curto encontro entre as duas que pode significar muita coisa do ponto de vista político em geral e do ponto de vista da proteção das vítimas que se abre depois de aprovada a reforma da Lei que transpôs a tal linha vermelha de Montero.

Reformar uma legislação que foi considerada de vanguarda e para cuja aprovação foi crucial o acordo PSOE-PODEMOS dando origem a uma fratura desse apoio é coisa difícil de explicar a alguém de mente aberta e de boa-fé. Percebe-se que a aplicação em concreto da lei de 2022 gerou problemas imprevistos e que se voltou contra o seu próprio espírito, tendo contribuído para a libertação de abusadores e violadores. Mas neste caso o curioso é que quem usa o argumento de linhas vermelhas é a força política mais radical. Ao introduzir critérios e nuances que colocam a nova versão da lei mais perto da que existia antes de outubro de 2022, o PSOE parece querer dizer que não votou o seu vanguardismo de boa consciência, o que parece credível face ao caráter errático da governação de Sánchez.

Por isso, esta imagem simbólica do enlace de Diáz e Montero deve ficar para memória futura. Talvez nos ajude a compreender coisas que só ocorrerão no futuro.

A política é fascinante.

 

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