quarta-feira, 8 de março de 2023

A BIOGRAFIA DE FERNANDO PESSOA

 


(Ando  às voltas com a biografia de Fernando Pessoa de Richard Zenith há já algum tempo e compreende-se a razão. Trata-se de uma vasta e volumosa biografia, pelo que exige várias etapas e momentos de leitura e assim tenho feito, à medida que me vou entusiasmando pela qualidade da investigação deste grande apreciador e conhecedor da obra de Pessoa. Tenho a perfeita noção de quanto mais formos leitores abrangentes da obra de Pessoa mais apreciaremos a biografia e retiraremos dela a melhor utilidade possível. Como não me considero um conhecedor especializado de Pessoa, vou concentrar-me em dois aspetos que a biografia de Zenith nos proporciona, que considero justificativos por si só do interesse em nos abalançarmos a tal leitura.

Ninguém pode ficar indiferente à dimensão e abrangência da investigação de Zenith que consta desta biografia. Não tenho nem competência nem conhecimento que me permitam situar a obra de Zenith entre as biografias conhecidas de Fernando Pessoa, mas fui sensível ao facto da edição em inglês ter precedido a versão em português e referenciei na altura alguns ecos na imprensa estrangeira que me deram conta de duas coisas – a continuidade do impacto do legado de Pessoa lá fora e a valia que a generalidade dos observadores e críticos atribuiu à biografia de Zenith.

Aquilo que fica das minhas sucessivas entradas pela biografia adentro é a confirmação de uma personalidade e de um talento raros, de cujo estudo, estou certo, depende a profundidade e qualidade da nossa perceção sobre o que significa sermos Portugueses. Gente de pensamento também raro e profundo, como por exemplo Eduardo Lourenço, percebeu bem cedo essa importância e a ela dedicou páginas muito interessantes. O coordenador das Obras Completas de Lourenço para a Fundação Calouste Gulbenkian, Carlos Mendes de Sousa, escreveu: “Pessoa é a chave, é o guia que ajuda Eduardo Lourenço a interpretar o mundo. Em Pessoa, ele encontra o poeta que vai, mais do que qualquer outro, ao encontro daquilo que são as suas inquietações, a ausência de Deus e de saída, a ironia, questões relacionadas com o pessimismo e a melancolia”.

No estádio de leitura em que me encontro, aproximadamente a metade da vasta obra de Zenith, há dois pontos que gostaria de destacar como o meu testemunho justificativo de a recomendar vivamente.

O primeiro é um contributo indireto da biografia e que consiste na sua contextualização histórica, o que nos permite sistematizar em função do percurso de Pessoa elementos informativos relevantes sobretudo das duas últimas décadas do século XIX e das três primeiras décadas do século XX. E não deixa de ser revelador da própria personalidade de Pessoa a forma como ele se relacionou com essas dimensões da sociedade portuguesa de então.

Mas o que me impressionou mais nesta primeira metade da obra de Zenith é a espantosa investigação sobre a miríade de personalidades interpostas criadas pela imaginação de Pessoa, desde muito tenra idade. Para quem tem a ideia de que os desdobramentos de personalidade se limitariam aos heterónimos conhecidos e consagrados, a biografia de Zenith representa uma poderosa desmistificação dessa pretensa certeza, tamanha é a magnitude, diversidade e criatividade das diferentes personalidades criadas, que dialogam e debatem entre si. Tudo se passa como se Pessoa precisasse de assumir uma personalidade distinta para se apresentar e dialogar com a sociedade nos seus diferentes domínios e minha nossa o número é tão elevado e os tipos tão diversificados que só por essa invasão do mundo mais oculto de Pessoa deveríamos agradecer ao Richard Zenith pela sua investigação.

Há obras que lemos que se perdem na voracidade com que lemos tantas coisas.

Com esta biografia, a minha relação com a obra e personalidade de Pessoa tem dois tempos: o antes desta biografia e o depois da mesma. Isso basta para recomendar vivamente a sua leitura.

Chapeau!

 

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