sexta-feira, 27 de outubro de 2023

A ELEIÇÃO DAS NOSSAS VIDAS

 

                                (Rebecca Chew para o New York Times)

(À boleia da magnífica e lúcida entrevista que Martin Wolf realizou com um preparadíssimo Vítor Gonçalves na RTP 3, retomo para reflexão a paradoxal e obtusa situação em que os EUA se encontram, cada dia que passa mais adensada de nuvens negras a pairar no horizonte político da nação americana. O cronista e editor do Financial Times, cuja evolução de pensamento constitui em si própria uma espantosa descrição da evolução do capitalismo (vejam a evolução de pensamento desde “Why Globalisation Works” ao “The Crisis of Democratic Capitalism” agora apresentado em Portugal, passando pelo “The Shifts and the Shocks”), não hesitou quando referiu que as eleições presidenciais americanas em 2024 seriam as eleições da sua já longa vida. O mundo da liberdade está hoje dependente do êxito e empenho de um velho de 81 anos, desaparecidas que estão para parte incerta as promessas que a personalidade de Kamala Harris nos inspirava. Nesse mundo de liberdade, está o modo como o Presidente americano articulará a defesa da Ucrânia e a sua intervenção no conflito Israel-Hamas, mas também o futuro da própria nação americana. Aquilo que julgávamos não ser um mito, a solidez das instituições democráticas americanas, tem vindo a desfazer-se em etapas sucessivas, à medida que o insurrecionismo trumpista vai dominando o Partido Republicano e dinamitando a política americana. E o que é preocupante é a sequência lógica e irreversível que se observa nos acontecimentos, da recusa em aceitar resultados de eleições livres, da invasão do Capitólio até à mais recente crise do Congresso americano, com um trumpista inqualificável como speaker desse órgão vital da democracia americana.

A imagem de Rebecca Chew por mim selecionada para abrir este post acompanha o editorial do New York Times que, com desassombro, traz a ideia de que “o trumpismo rege o Congresso”. O desatino da situação é tão profundo que por vezes temos dificuldade em compreender que estamos perante uma situação real e não face a uma curiosidade distópica e passageira. Não, a verdade é que o Partido Republicano depois de três semanas achincalhantes de golpes e contragolpes palacianos, processo já por si só degradante e que afastou um candidato mais moderado, acabou por votar com unanimidade num seu representante que alinhou objetivamente com a negação dos resultados das eleições de 2020.

A ação efetiva que os republicanos trumpistas exerceram para consagrar o novo speaker deve ser vista como uma retribuição aos serviços por ele prestados a Trump no processo de negação dos resultados eleitorais e, simultaneamente, com um apagamento total de todas as outras tendências não diretamente alinhadas com o trumpismo. Podemos imaginar o cenário de bastidores que acompanhou e conduziu a este apagamento e nele seguramente veríamos podridão de processos.

Não vou discutir aqui o que é que este passo pode representar do ponto de vista da inação e bloqueio à governação da administração Biden. Esse será em meu entender um mal menor. O que gostaria de salientar é a imagem que os americanos estão a dar ao mundo a partir da sua casa da Democracia. Em tempos em que o mundo que aspira a ser livre está dependente da firmeza controlada que os americanos revelarem nas diferentes frentes de perturbação internacional em que estamos mergulhados, os valores projetados a partir da House não auguram nada de bom em matéria de farol democrático. Por mais essa razão, as eleições de 2024 não serão apenas as eleições mais importantes da longa vida de Martin Wolf, mas também de todos as que aspiram a preservar a todo o custo os valores da democracia.

 

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