domingo, 22 de outubro de 2023

JÁ NÃO HÁ PACHORRA PARA TANTO CANCELAMENTO

 

                                    (Com a devida vénia ao Jornal Público)

(Não me atrevo a dizer que estaremos no cimo da onda dos cancelamentos por qualquer pretexto, sobretudo porque intuo que possamos ser surpreendidos com o prolongamento desse auge de cancelamentos a toda a hora e a torto e direito. Numa interpretação benigna deste apuro de opinião sancionatória, poderíamos concluir que a cultura do cancelamento corresponderia a um processo de extensão e qualificação da opinião pública. Mas não, não se trata disso. O que temos à frente dos nossos olhos é uma evidente queda e desvalorização do direito à liberdade de expressão e pensamento. O que, afinal, não nos deveria espantar, porque se não estamos já no miolo do universo do “big brother is watching you”, estaremos lá muito perto. Temos andado bastante distraídos, alguns de nós maravilhados com o potencial de eficiência das tecnologias de informação e comunicação no nosso próprio trabalho e no das nossas organizações, não prestando a devida conta à concentração desses meios, à nossa dependência de meios e fontes que estão cada vez mais concentrados e, por isso, arautos de poderes inconfessáveis. O caso do cancelamento de Paddy Cosgrave e demissão de direção da Web Summit (Governo e Moedas devem estar num sobressalto) é o último exemplo dessa cultura de cancelamento, mas se estivermos retrospetivamente atentos, na área do posicionamento cultural e civilizacional tem sido um fartar vilanagem e nestas coisas, tal como em muitas outras, lá tivemos o nosso caso de wokismo de pequena escala local com a aqui analisada tragédia da estátua de Camilo.)

Este fim de semana, crucial para secarmos as guelras de tanta humidade, a comunicação social portuguesa brindou-nos com alguns artigos de muita qualidade para nos ajudar a compreender este pantanoso clima social, no mundo e cá pelo burgo, embora com a proporcional redução correspondente á nossa pequenez e excentricidade geográficas.

O artigo de José Pacheco Pereira, no Público, é fundamental para compreendermos que se nos deixarmos apanhar por este ambiente de preto e branco, em que uma grande parte da imprensa e televisão chafurdam com deleite. Não há espaço para as nuances inteligentes e na prática todos os que ousam ir por esse rumo são “cancelados”, não nos termos em que alguns cancelamentos isolam proscritos e pecadores, mas por nos ser atribuída menoridade e, obviamente, não acesso à publicação de opinião. E a brutal agressão do Hamas a Israel e a não menos brutal agressão deste último a populações palestinas indefesas é um bom exemplo desse preto e branco em que nos querem aprisionar. Começo a não ter dúvidas que o programa político do Hamas se resume hoje a matar judeus até a uma eventual extinção do movimento. E do lado mais extremista de Israel, visto pela política sistemática de favorecimento de colonatos ilegais na West Bank existe também um programa implícito de expulsão dos Palestinos dos territórios que corresponderiam ao modelo dos dois Estados. O que é um cidadão normal pode dizer quanto a este extremismo radical, assente na tese do Estado só para uns, pressupondo que se extermina o outro? Haverá algum racional que possa explicar e condescender com os programas de matar judeus e exterminar Palestinos?

Onde está o espaço para discutir as fragilidades do modelo dos dois Estados, quer na perspetiva dos Palestinos (um Estado com territórios sem contiguidade), quer na de Israel rodeado por ambos os flancos por um Estado que lhe é hostil? É óbvio que no mundo do preto e branco não existe qualquer espaço para tal.

Noutro plano, Bárbara Reis assina também no Público um excelente artigo de investigação diplomática sobre a política de negócios estrangeiros praticada em Portugal desde tempos já remotos, incluindo o antes do 25 de abril, que nos traz uma ideia talvez surpreendente para muita gente de boa fé diplomática. A jornalista do Público mostra com evidência segura a existência do princípio “Há 50 anos que Portugal diz: tudo pela Palestina, nada contra Israel - defender e considerar como legítimos os direitos do povo palestiniano a terem um Estado, condenar a ocupação por Israel dos territórios árabes e defender a existência do Estado de Israel”. O artigo é surpreendente na sucessão de evidências de resoluções, tomadas de posição, votações e outras formas de pronunciamento e merece uma ampla difusão, já que contraria muito do preto e branco que circula por aí e a fúria de cancelamento por cá instalada.

Finalmente, a cada vez mais fora da caixa Ana Sá Lopes escreve um artigo delicioso sobre o cancelamento de Paddy Cosgrave, misturando ironia e criticismo dos grandes patrões mundiais das TIC. Não tenho qualquer pretensão para servir de advogado de defesa de Cosgrave, aliás uma personalidade que não me atrai por aí além. Mas é incrível que não se compreenda que Cosgrave é irlandês e que a Irlanda tem sobre a questão de Israel e Palestina uma posição muito formada há já longo tempo e que o líder da Web Summit se limitou a extroverter essa cultura nacional em que está mergulhado.

Pode ser que o governo português e a Câmara de Lisboa compreendam que a Web Summit não é apenas a sedução mediática do tecno-otimismo. Convirá começar a compreender o ambiente de concentração ou concentracionário que o alimenta e esse não é tão sedutor.

Moedas, Costa e Marcelo cuidem-se e refreiem o vosso entusiasmo às vezes patético com este tecno-otimismo!

 

Sem comentários:

Enviar um comentário