(Não é seguramente um dos melhores filmes de Nanni Moretti. Mas é um filme comovente, revelando o talento do realizador italiano que muito aprecio para refletir sobre a morte das coisas, a longa mudança das coisas, metaforicamente adaptada ao cinema e à sua transformação, mas também à sua própria relação conjugal e à transformação do Partido Comunista Italiano. Mais do que um só filme, o Il Sole dell’Avvenire é uma matriosca de filmes, o que nós vemos, o que está a ser filmado e um outro. Este último, do qual a mulher de Giovanni (Nanni Moretti), é a produtora emerge numa cena final, em que perante a estupefação de todos Giovanni entra em cena para uma longa dissertação sobre a violência no cinema, suspendendo o tempo, numa patética tentativa de interromper o curso da valorização da vulgata fílmica. A cena inicial do filme em que um conjunto de militantes pinta a vermelho carregado no muro-escarpa de um rio, que se presume ser o Tibre, o título do filme fica-nos na memória, compreendida melhor quando se percebe que a ação do filme que se desenrola dentro do filme que vemos se passa num bairro de grande implantação do Partido Comunista Italiano, cujo líder local pertence aos quadros do Unità, jornal do PCI. Uma companhia húngara de circo é convidada pela estrutura local, numa alusão clara aos acontecimentos dos anos 50 em Budapeste e que emerge brutalmente no filme com as imagens reais e documentais da violência dos tanques russos dizimando os rebeldes.)
Numa sessão de trabalho dirigida pelo realizador Giovanni, destinada a contextualizar a ação em que as filmagens iriam decorrer, quando se refere a grande implantação que o PCI teve na sociedade italiana, há um desatinado membro da equipa pergunta se o número de militantes comunistas era composto de uma multidão de russos que tinha vindo para Itália. A intenção de Moreti é claramente a de mostrar a distopia que a implantação do PCI representava para aquele desatinado membro da equipa, incapaz de perceber como foi possível essa grande implantação na sociedade italiana. O desencontro de Moretti com a mudança acelerada das condições de produção e criação no cinema de hoje tem um dos seus melhores momentos na fabulosa reunião entre Giovanni e Paola (sua mulher e produtora) com uma equipa da Netflix, vista em 180 países, como a personagem-robô dessa companhia martela incessantemente o desenrolar da reunião. Ou ainda, na sequência do fracasso financeiro do produtor francês (interpretado por Matthieu Amalric) que deixa as filmagens paradas, a aproximação aos produtores coreanos, que traduzem tudo até a conversa mais íntima entre Giovanni e Paola, na sequência da sua rotura conjugal. E também na ligação amorosa da sua filha (que protagoniza no filme em construção a mudança em que Moretti acredita) com o embaixador polaco, muito mais velho do
A nostalgia das canções italianas (e não só, pois a música de Joe Dassin aparece também em destaque) faz parte de um novo argumento que Giovanni estará a criar e passeia-se por todo o filme, aqui e ali quebrada pela inventiva de Moretti, sobretudo naquela cena notável em que Giovanni e Paola cantam no carro Aretha Franklin.
Percebe-se que o filme que se desenrola em torno dos acontecimentos de 1956 está preparado para um fim em que o representante local do PCI e funcionário do L’Unità, Ennio, um fabuloso Virgilio Orlando) se suicida não aguentando a contradição do Partido não condenar a invasão soviética de Budapeste. O próprio Giovanni o afirma, referindo que tinha pensado o filme a partir do fim, ou seja a partir desse suicídio. Quando na preparação da cena, o próprio Giovanni coloca a corda em torno do pescoço e deixa todo o plateau em suspenso, para depois interromper essa cena final e deixando tudo para o dia seguinte, percebe-se que o filme dentro do filme terá um outro fim. Sob a pressão da rebeldia de Emma (a fabulosa Barbara Bobulova), Ennio (Virgilio Orlando) assume a contestação à não condenação pelo PCI da invasão de Budapeste e o filme dentro do filme acaba numa parada de festa, com Giovanni à frente e onde Moretti homenageia diferentes personalidades que se juntam à marcha festiva, numa alegoria de Il Sole dell’Avvenire. Lembramo-nos obviamente de Fellini do 8 ½ e também de Amarcord, como se Moretti fizesse citações de quem ele venera. Até o grande arquiteto e urbanista Renzo Piano aparece no filme numa curta resposta a uma interpelação de Moretti e uma subtil chamada perdida, enviada para a caixa de mensagens, endereçada a Scorcese marca o ambiente.
Já li algures que Il Solle dell’Avvenire representaria o ocaso de Moretti, o que me parece uma análise totalmente descompensada. Não é seguramente o melhor dos Moretti, mas a sua perceção desencantada do declínio das coisas continua a encher-me a alma. Na ambiência quase íntima do Trindade, tive ontem um fim de tarde-início de noite para mais tarde recordar. Aquele filme visto no Arrábida não seria a mesma coisa. O Il Sole dell’Avvenire tem de ser visto na intimidade do Trindade.
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