quarta-feira, 4 de outubro de 2023

UM MODELO QUE NASCEU TORTO E MAL AMANHADO

 


(Os nossos leitores já compreenderam que a questão da regionalização já me despertou mais motivação e empenho cívico do que atualmente me suscita. Fui daqueles que demorou imenso tempo a digerir o resultado do malfadado e canhestramente preparado referendo de há muito tempo, sobretudo quando me apercebi que o regionalismo a sul era mais forte do que a norte e os resultados do “não” assim plenamente o demonstraram. Tenho para mim que só em contextos de entendimento tático e estratégico entre o PS e o PSD será possível preparar algo de decente em matéria de regionalização. Por isso, este limbo que se vive nesta matéria debilita fortemente a minha propensão regionalista (os brasileiros diriam tesão regionalista) e sinceramente acho que há questões nacionais bem mais interessantes em que pensar e para as quais poderei contribuir ativamente. Depois, acho que também fui muito claro criticando abertamente o modelo híbrido desencantado por António Costa (e o inefável Cabrita, obviamente), em que os Presidentes das CCDR aparecem eleitos num colégio eleitoral de autarcas, numa situação híbrida de representação ascendente e de coordenação intersectorial do Estado que na altura achei ser algo que não iria correr bem. Mas sendo eu um tipo de boa vontade e comprometido com o interesse público, embora trabalhe no privado, achei que deveria dar o benefício da dúvida. Passado já algum tempo sobre a incauta medida, acho que devo voltar ao assunto para dar conta do que tenho encontrado no terreno, sobretudo do ponto da coordenação intersectorial a favor do desenvolvimento dos territórios, não esquecendo que está também no terreno a experiência da coordenação intermunicipal ao nível dos territórios das NUTS III, através da ação das chamadas Comunidades Intermunicipais.)

 

Devo já dizer que, se na altura em que foi proposto e legislado me pareceu que se tratava de uma solução que iria emaranhar ainda mais o nosso modelo de organização territorial, avaliando agora a experiência com algum conhecimento de terreno concluo que a minha intuição estava certa. Aliás, em conversa recente com o meu Amigo Professor João Ferrão, que sabe destas coisas bastante mais do que eu e já meteu as mãos na governação destas matérias, num almoço aprazível em Lisboa, concluímos que estávamos certos quando torcemos o nariz ao modelo.

O pretenso empoderamento ascendente e autárquico que o modelo concede aos Presidentes das CCDR em nada de novo se tem traduzido em matéria seja de coordenação da atividade intermunicipal, seja em matéria de poder vinculativo para a coordenação intersetorial. Aliás, a integração na tutela organizativa das CCDR de alguns serviços desconcentrados da administração central, ao mesmo tempo que se assiste a uma claríssima centralização, dita a bem da eficiência, de outros serviços, como acontece na saúde com a criação do CEO e desvalorização plena das ARS e na cultura, diz bem do ambiente institucional estranho que se vive por esta altura. As CCDR permanecem, por um lado, em reorganização e não sabemos que tempo vai durar a estabilizar o caldo de culturas organizacionais hoje acolhidas na mesma instituição e, por outro lado, o processo de coordenação intermunicipal em curso nas Comunidades Intermunicipais de âmbito NUTS III continua o seu caminho, não saindo da cepa torta, pese embora algumas gloriosas exceções ditadas por Secretários Técnicos de CIM mais voluntariosos. A confusão do modelo é evidente. As autarquias estão indiretamente representadas nas CCDR elegendo os seus Presidentes e estão ativamente representadas nas Comunidades Intermunicipais, sem entretanto que a coordenação interssetorial tivesse sido reforçada e sem que a coordenação intermunicipal tenha também avançado significativamente.

Ou seja, impõe-se a sagrada questão: em que medida o modelo de regionalização “fake” melhorou o nosso modelo institucional de organização territorial? A resposta é claramente que não aqueceu nem arrefeceu o ambiente, sobretudo do ponto de vista dos dois indicadores que interessem, a qualidade e vinculação da coordenação entre setores e diferentes políticas públicas e a racionalização da coordenação intermunicipal.

Entretanto e não necessariamente em correlação causal com as peripécias do modelo “fake”, a minha experiência de terreno mostra-me um ambiente institucional cada vez mais crispado, com gente cansada e cada mais desmotivada, sem a mínima capacidade e interesse de arriscar o que quer que seja. A minha experiência de avaliador é riquíssima para compreender este estado das coisas e irei transmiti-lo com clareza no seminário que a AD&C organiza no próximo dia 20 em Évora, para discutir num painel o tema “Como potenciar a utilidade das avaliações?”.

O que nasce torto …

 

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