quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A TEMPESTADE PERFEITA ALEMÃ

 

                                                    (Financial Times)

(Desde os tempos em que Angela Merkel abandonou o cargo de Chanceler e a liderança da CDU, e vá lá saber-se que sensações levou a Senhora Merkel para o recato da sua intimidade, a situação económica, política e social alemã levou uma grande volta, deteriorou-se e a nova coligação entre o SPD, Verdes e Liberais tem enfrentado um contexto claramente desafiante e cada vez mais indeterminado. A designação de tempestade perfeita corresponde a uma diversidade inquietante de elementos de contexto, não só no plano interno, mas também do ponto de vista do papel motor e determinante que a economia alemã assume no desempenho económico europeu. A ideia de tempestade perfeita corresponde também à emergência de novos elementos de conhecimento sobre o modelo económico alemão efetivo, os quais estão longe de fornecer da experiência alemã uma imagem tão favorável como a que geralmente era construída.)

 

Em primeiro lugar, teve bastante eco na imprensa económica o que a guerra na Ucrânia e a disrupção das cadeias de valor globais provocada pela tensão entre os EUA e a China descobriram de subjacente e de menos positivo na economia alemã. O estado a que chegara a dependência energética da Alemanha face a fontes de abastecimento de energia russas surpreendeu tudo e todos, embora a deferência para com a personalidade de Merkel (que terá evitado, em meu entender, um revisionismo mais extenso e traumático do período de governação de Merkel) tenha ajudado a desvalorizar a dimensão deste erro estratégico. A questão energética tem na atual coligação no poder uma dimensão de estilhaços possíveis de proporções assinaláveis, sobretudo porque Merkel se tinha comprometido com a rejeição do nuclear. Por outro lado, as articulações da economia alemã com a economia chinesa revelaram-se bem mais profundas e determinantes do que era do conhecimento generalizado, já que do ponto de vista dos consumos intermédios importados da China e da força de vendas que o mercado chinês representa para a economia alemã ficou claro que a disrupção brusca e não controlada com esse mercado traria à economia alemã sérios problemas de continuidade operativa.

A cultura manufatureira alemã tão apreciada e apresentada como uma boa prática do ressurgimento industrial a que a União Europeia revela-se afinal de sustentação mais problemática do que era imaginável, contribuindo assim para uma discussão mais ampla e motivada do ressurgimento industrial europeu.


 

O que é mais curioso é que tudo isto tem acontecido com um comportamento do mercado de trabalho que, pelo menos aparentemente segundo dois indicadores principais (a evolução do emprego a nível global e da taxa “emprego/população), não é propriamente indicativo da tal tempestade perfeita, dado o confronto no plano da União Europeia. Entretanto, novas análises sobre o aparente “novo milagre alemão” observado a partir do comportamento no mercado de trabalho trazem perspetivas de interpretação complementares. Por um lado, esse grande esforço de incorporação no emprego de força de trabalho parece começar a chegar ao fim, apesar dos surtos de imigração constante para o território alemão, até porque parte desta população não tem integração imediata no mercado de trabalho. Por outro lado, o vigor revelado pelo mercado de trabalho alemão no período coberto pelos dois gráficos acima não pode ser desligado do vertiginoso aumento do trabalho a tempo parcial e do autoemprego então observados. Esta variável contribuiu para afastar a economia alemã do pleno emprego. De facto, o número de horas trabalhadas e o volume de trabalho prestado apresentaram um comportamento inverso do emprego. Recordo-me agora que, já no meu último trabalho de colaboração com a Professora Pilar González para a OIT, o representante alemão no grupo Gerhard Bosch alertava para o facto dos apoios ao emprego jovem na década de 2010 se terem traduzido essencialmente em aumento do trabalho a tempo parcial[1].

Aparentemente e dado o volume do trabalho a tempo parcial, a economia alemã apresentará ainda um potencial relevante de caminhada para o pleno emprego, na sequência de processos de transferência do trabalho a tempo parcial para trabalho a tempo inteiro, realizados que sejam alguns investimentos em formação e trabalho de “matching” entre necessidades de empresas e oferta de trabalho. No entanto, existe uma outra dimensão da tal tempestade perfeita que pode complicar este processo de ajustamento indutor de mais crescimento. A problemática da habitação apresenta presentemente na Alemanha uma extrema gravidade, revelador sobretudo, tal como cá, como o tenho vindo a salientar, de insuficiência de investimento público. Num governo liderado pelo SPD esta lacuna é incompreensível, tanto mais que a pressão imigratória na Alemanha é obviamente muto pressionante em matéria de procura de habitação, sobretudo se pretendermos que a imigração seja acolhida e integrada. Em meu entender, em contexto de pressão imigratória, a ausência de investimento público de habitação e o prolongamento da crise nesta matéria é um passaporte para a xenofobia e para o crescimento da extrema-direita da AfD.

Ou será por acaso que o SPD suportou recentemente a humilhação de nas eleições de Hesse (15,1% contra 18,4%) e da Bavaria (8,4% contra 14,6%) ter ficado atrás da extrema-direita?

Tanta cegueira política impressiona!



[1] O economista Adam Tooze documenta bem esta questão, invocando para isso no seu Chart Book o contributo de Holger Schmieding, economista chefe no Banco Berenberg.

 

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