(Com a devida vénia ao Jornal Público)
(Fruto de más decisões no passado, em que se destacam a mais que discutível opção rodoviária nacional gerada pela pressão do lobby automóvel e a impreparação técnica com que algumas propostas de investimentos foram concebidas, caso típico da ligação por TGV de Lisboa a Madrid nos tempos de José Sócrates, com previsões de procura que não lembrariam ao careca, Portugal perdeu paradoxalmente o comboio das infraestruturas ferroviárias. A situação de inferioridade estrutural em que essas más opções do passado colocaram o País face à restante União Europeia, a começar pela situação face a Espanha, agravadas pela premência da descarbonização, dificilmente será superável nos próximos tempos. Isso acontecerá pese embora o governo do PS pareça ter acordado para a necessidade de mitigar essa inferioridade estrutural, designadamente para tirar partido em termos de proximidade da significativa evolução que o transporte ferroviário teve na vizinha Espanha. O problema da mitigação parece ele próprio ter resolução algo comprometida, já que tem vindo a conhecimento público todo um rosário de dificuldades de implementação de obra e de projetos, de que os hoje noticiados pelo Público problemas do encerramento bastante superior ao programado da Linha da Beira Alta são apenas uma ilustração. E, por isso, se justifica uma reflexão mais alargada sobre esta incapacidade também ela estrutural de decisão e de implementação de decisões, que constituirá o tema do post de hoje.)
Em expressão bem popular, a modernização das infraestruturas rodoviárias tem sido em Portugal tem sido um exemplo claro de “engonhar as decisões”, com falta de clareza de opções e sobretudo criação de expectativas sobre matérias que uma avaliação expedita ditaria ser liminarmente rejeitadas.
De acordo com a minha experiência de trabalho no planeamento deste tipo de investimentos, posso descrever um desses exemplos da “insustentável ligeireza” com que estas matérias são abordadas.
Há já algum tempo, quando ficou politicamente claro que as ligações por TGV de Lisboa a Madrid e de Lisboa ao Porto estavam inviabilizadas por ausência de recursos de financiamento e também porque as previsões de procura para o Lisboa-Madrid assentavam no pressuposto irrealista de que todo o tráfego aéreo entre Lisboa e Madrid e parte do automóvel seriam arrebatados pelo comboio de alta velocidade, os autarcas galegos e nortenhos do Eixo Atlântico começaram a pensar na possibilidade do Porto-Vigo ser concretizado em regime de alfa pendular. Quando não há cão caça-se com gato e no Eixo Atlântico começou a enraizar-se a ideia de que a modernização e eletrificação da linha permitiriam com algum investimento e um ramal expedito entre Nine e Braga a possibilidade de uma ligação em alfa pendular, o que para os galegos significava uma ligação mais rápida a Lisboa.
Fui encarregado com a equipa da Quaternaire de realizar esse estudo prévio, no qual chegámos à conclusão de que tal possibilidade implicava do lado português intervenções infraestruturais de algum vulto, mesmo admitindo que o percurso continuaria a fazer-se por via única numa larga parte do trajeto. Ora, tal como o identificámos na altura, essas melhorias de intervenção infraestrutural não correspondiam às que estavam previstas na programação nacional, que se limitavam à eletrificação da via. A conclusão era óbvia, olhando por exemplo para o túnel de Caminha e para outros troços cuja configuração era incompatível com a velocidade de um alfa pendular. Claro que hoje em dia, à velocidade média em que se circula no Alfa entre Lisboa e Porto, tudo isto é muito relativo. Do lado galego, a necessidade de construir o túnel a sul de Vigo era vital e sabíamos na altura (a situação está hoje praticamente na mesma) que essa infraestrutura era vital para oferecer à viagem uma duração competitiva, já que o percurso por Redondela até ao porto de Vigo e não ao centro da Cidade alonga a viagem em pelo menos vinte minutos a meia hora.
Na altura percebi que a ideia de ver o Alfa passar uns metros abaixo da minha varanda de Seixas fronteira a Santa Tecla era uma impossibilidade. O que constituiu para mim uma estranha evidência foi a incapacidade das autoridades nacionais clarificarem essa impossibilidade, numa palavra “engonhando” e alimentando expectativas que não tinham qualquer fundamento. Segundo a nossa avaliação de então, os presumíveis problemas de procura que a linha poderia enfrentar eram incomensuravelmente menos relevantes do que a impossibilidade atrás referida. Até porque todos sabemos que a modernização competitiva da infraestrutura pode revolucionar as previsões de procura.
Tudo isto foi alterado com a decisão do ministério de Pedro Nuno Santos regressar ao TGV Porto-Braga-Vigo (com prioridade à ligação Braga-Vigo) como opção nacional de entroncar com a rede europeia de alta velocidade através da ligação Vigo-Madrid. Mas basta fazer contas para se perceber quanto tempo passou entre essa decisão e a hoje completamente ausente evidência de que alguma coisa tenha sido avançada nesta matéria. Népia.
É neste contexto que o trabalho de Carlos Cipriano para o Público de ontem sobre os atrasos da Linha da Beira Alta é sintomático e bem ilustrativo desta insustentável ligeireza do investimento público ferroviário em Portugal. O prolongamento do encerramento da Linha da Beira Alta por mais seis meses, na melhor das hipóteses, é bem tratado pelo jornalista e cito dois parágrafos:
“(…) As razões para o atraso na principal linha férrea que liga Portugal ao centro da Europa são várias e sucessivamente repetidas: a guerra na Ucrânia, as quebras nas cadeias logísticas, dificuldades de mão-de-obra, falta de materiais, inflação. Em outubro de 2022, a IP justificava uma prorrogação do prazo por mais dez meses pela necessidade de construir um novo viaduto ferroviário em Santa Comba Dão devido às obras de alargamento do IP3 naquele local. Mais tarde, a empresa admitia que tinham sido furtados 30 quilómetros de catenária (cabo de alta tensão que fornece a energia elétrica aos comboios), o que teria implicações na conclusão das obras. Ultimamente descobriu-se que em várias empreitadas foi destruída indevidamente cablagem de sinalização que devia ter sido preservada e que agora vai ter de ser reposta. As obras mais atrasadas são no troço entre Pampilhosa e Celorico da Beira. Daí até à Guarda, os trabalhos estão mais adiantados e deverão ser realizados comboios de ensaios no mês de novembro. A IP admite mesmo abrir a linha da Beira Alta faseadamente, podendo começar precisamente pelo troço Celorico da Beira-Guarda”.
O rosário dos problemas de implementação está todo aqui, até o roubo de catenária e de cablagem de sinalização faz parte do cardápio. Há dias, o sistema de sinalização ferroviária de toda a Área Metropolitana de Lisboa estava em baixo, com atrasos significativos no Alfa, porque tinha havido roubo de cablagem de sinalização. Acho que não há melhor indicador do estado da arte lamentável a que chegou a tal insustentável ligeireza do investimento público ferroviário, com Galamba ou Pedro Nuno isso não importa. Fazem parte do problema.
Sem comentários:
Enviar um comentário