segunda-feira, 18 de março de 2024

AINDA A QUESTÃO DOS LEFT BEHIND OU DA GEOGRAFIA DO RESSENTIMENTO

 

(O contexto político nacional em que estamos mergulhados é muito pouco estimulante para o tipo de reflexões que este blogue procura animar. O mundo comunicacional permanece amarrado à discussão das minudências e perde de vista o essencial. Assim, por exemplo, discute-se se Marcelo fez bem ou mal iniciar as conversas com os partidos políticos antes da publicação dos resultados da diáspora, os quais a meu ver aumentarão ainda mais a magnitude do voto na maioria informe e desestruturada de direita e que tudo indica levarão o Augusto Santos Silva a regressar às lides académicas e ao Porto. Por outro lado, a onda mediática que cavalgou a emergência dessa direita alargada permanece no mesmo tom e uma insuportável campanha de pressão sobre o PS está desenhada no sentido de lhe exigir a viabilização do governo da AD com ou sem a muleta da IL. Caros Senhores, o PS de Pedro Nuno Santos tem mais do que fazer do que fazer a papinha a essa governação que é agora um problema a resolver no seio da tal maioria alargada e desestruturada de direita. O problema central do PS é explicar a perda de cerca de 500.000 votos no Continente e ilhas, à qual se adicionará a perda na diáspora. E sobretudo recuperar discurso e propostas para dialogar com a população mais jovem, travando a sua deslocalização para o ressentimento que neste contexto penaliza quem governou. Por isso, neste contexto pouco desafiante, regresso ao tema da geografia do descontentamento ou do ressentimento que já varreu a Europa e que chegou agora com estrondo até nós, aproveitando, agradecendo duas referências bibliográficas que o Amigo Professor Luís Carvalho me enviou recentemente, alargando o referencial que o agora guru da política regional e de coesão Andrés Rodríguez-Pose abriu com os “places that don’t matter”.)

A minha primeira reflexão vai no sentido de preferir a abordagem dos “left behind” à dos “lugares que não interessam”. A dimensão dos “left behind” é mais sugestiva porque integra a dimensão dos territórios que podem perder o comboio da mudança e do desenvolvimento, não interessa agora as razões porque isso acontece, e também das pessoas que por questões de marginalização, exclusão ou simples desqualificação agravada tendem a permanecer em “armadilhas” de pobreza ou exclusão, perdendo o contacto com a dinâmica social. Sabemos que as questões da justiça social e da justiça territorial não apresentam na investigação o mesmo desenvolvimento. O legado teórico para abordarmos as questões da justiça social (bastará pensar em Rawls, Amartya Sen ou mesmo Martha Nussbaum para percebermos isso) é incomparavelmente mais robusto do que o existe para a justiça espacial ou territorial. Por isso, não adianta de nada invocar o princípio simplista de que existindo territórios deixados para trás, também existirão pessoas nessa condição. Sim, isso é verdade, mas os instrumentos teóricos para discernir sobre essa injustiça não são de todo os mesmos e têm graus de desenvolvimento muito desiguais.

Assim, todos os contributos para aprofundar a abordar dos left-behind” são bem-vindos e os que o Luís Carvalho propõe estão nesse grupo.

O primeiro texto é de autoria de um coletivo de autores, publicado na popular Regional Studies, no qual o nome talvez mais importante e conhecido é o de Andy Pike. Trata-se essencialmente de um contributo a nível conceptual, procurando ver mais fundo numa terminologia vibrante que é mais rica do que a diversidade conceptual que nela se acolhe. Os autores reconhecem que a ideia de “left behind places” veio reanimar a temática da geografia das desigualdades, esta última ela própria induzida pelo recrudescimento da importância que o tema da desigualdade assumiu nas sociedades mais avançadas, sobretudo quando o Estado social começou a dar parte de fraco. E embora a língua inglesa, que domina claramente a ciência regional, seja particularmente ousada na diversidade de designações conexas com os “left behind”, a verdade é que o tema redobrou de importância quando se associou às suas manifestações espaciais uma tentativa de explicação do voto de protesto ou descontentamento, revestindo frequentemente a natureza de voto antissistema favorecedor das tentações não democráticas. Os autores reconhecem, entretanto, que a disseminação do conceito “alarga o enquadramento das desigualdades geográficas além das simples preocupações económicas para integrar as suas múltiplas dimensões, socialmente interrelacionadas, políticas, ambientais e culturais” (Pike e outros, 2023: 2). O artigo reivindica-se assim de uma “etimologia geográfica”, interessado em que está em situar a designação no quadro das abordagens da desigualdade no plano espacial. É de facto impressionante o número de tipologias de evidências que podem subjazer ao conceito de “left behind” das dimensões mais físicas e infraestruturais às mais imateriais. Dir-se-ia que o conceito atualiza para os contextos de hoje uma temática, a do desenvolvimento desigual, que sempre esteve presente na ciência regional. É muito relevante reconhecer que a abordagem se pode reconduzir quer a lugares, quer a pessoas, conduzindo consequentemente a políticas “place-based” ou “people-based”. Tendo por referência a ideia do ressentimento, ele tanto poderá ser combatido com políticas transversais de lugar, quer com políticas dirigidas a grupos específicos.

O outro artigo, “People or Places that Don’t Matter? Individual and Contextual Determinants of the Geography of Discontent”, é de autoria de dois elementos do Departamento de Arquitetura do Politécnico de Milão, Camilla Lenzi e Giovanni Perucca, e ensaia uma tentativa de procura de laços causais entre as desigualdades observadas a nível intrarregional e o nível de descontentamento percebido no plano dos surveys e do voto, com as condições de desvantagem e de privação individuais a reforçar a influência. A novidade do artigo consiste em medir indiretamente o descontentamento através do registo de posições de desconfiança relativamente à União Europeia e às suas instituições, que deve ser entendida como uma proxy relativamente arriscada e estou a pensar por exemplo na sua aplicação ao caso de Portugal. Será que o pretenso descontentamento ressentido dos votantes Chega se identifica com esta desconfiança relativa às instituições europeias? Apetece dizer que teremos as próximas europeias para o testar.

Mas o principal interesse do artigo está na consideração de três condições diferentes para que as desigualdades contem na explicação do ressentimento expresso no voto:

  •         As desigualdades inter-regionais, ou seja, as que medem a situação de um determinado territorial (não interessa agora a questão da escala espacial) face a um referencial determinado, seja o nacional ou o comunitário;
  •         As desigualdades intrarregionais que se observam no interior desse mesmo território;
  •         As condições de privação individual medidas por um qualquer indicador de medida de condições de vida.

Os dois investigadores organizam assim duas hipóteses de pesquisa que constituem reconhecidos aprofundamentos: primeiro, as desigualdade intrarregionais tendem a reforçar o efeito positivo das inter-regionais na geração do ressentimento; segundo, o grau de privação material tende a reforçar o efeito positivo das desigualdades intrarregionais.

E assim a investigação avança e mais robusto será o nosso conhecimento sobre as manifestações espaciais do nosso “ressentimento eleitoral”.

Eis um bom tema de cooperação entre a geografia e a ciência política.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário