terça-feira, 19 de março de 2024

UM DEBATE QUE FINALMENTE CHEGOU, EMBORA TARDE E A MÁS HORAS

 


(Em alguns trabalhos profissionais sobre o sistema de inovação em Portugal e suas manifestações regionais e também em algumas reflexões de foro mais académico sobre políticas de ciência e tecnologia, antecipei em devido tempo que seria necessário um debate democrático no país sobre a alteração nas condições de financiamento da ciência e tecnologia induzidas pelo recurso aos Fundos Estruturais para aliviar o Orçamento de Estado. O meu argumento era liminar e mantenho essa posição. O financiamento da investigação científica e tecnológica a cargo dos Fundos Estruturais, designadamente dos Programas Regionais, está claramente orientada segundo opções estratégicas da Comissão Europeia para a transferência de conhecimento e de tecnologia para as empresas, obrigando a uma significativa alteração de estratégia por parte dos principais centros de produção de conhecimento, seja dos que permanecem entre muros das Universidades e Politécnicos, seja dos que migraram para instituições de base tecnológica e de interface. A adaptação de estratégias organizacionais que essa aposta implicou tem sido bem-sucedida. O meu argumento na altura era este: nestas condições, é fundamental um debate democrático que defina de uma vez por todas se Portugal quer ou não valorizar a sua investigação científica de base, que a tem e de qualidade internacionalmente reconhecida e, se assim for, reservar fundos de orçamento de Estado para o assegurar e/ou assegurar a ajuda a candidaturas ao espaço europeu de valorização da ciência.   Estava seguro de que esse debate iria tornar-se incontornável, que seria uma questão de tempo. Estava certo na raiz do argumento, só que não antecipei quanto tempo essa reação iria demorar. E demorou bastante. Há razões que podem explicar esse diferimento. Muita da ciência básica saltou do barco e procurou na transferência de conhecimento a salvação. Foi claramente o que se passou com a investigação nas ciências da vida que, tirando partido de alguma nova dinâmica empresarial, conseguiu encontrar nesse novo contexto, mesmo que precário, novas condições de financiamento, retardando o seu clamor por novas condições de financiamento para a investigação básica e não apenas a exclusiva aposta na chamada investigação aplicada.

Esta semana, o Jornal Público que é sem dúvida o jornal com melhores editores de ciência e tecnologia, deu ampla cobertura a esta questão. Falando com os meus botões, não pude deixar de reconhecer que finalmente a minha antecipação do problema estava respondida. O sistema agitou-se.

Assim, em 21 de fevereiro do presente ano, o investigador Jorge Almeida assinava um pungente artigo subordinado a esta afirmação – o Ministério da Ciência estaria a matar a ciência fundamental ou também por vezes designada de pura ou de base. Eis uma súmula do desabafo: “(…) Em concursos e discursos anteriores antevia-se uma visão cada vez mais economicista e imediatista dos apoios à ciência em Portugal: nos painéis dos concursos, nos projetos aceites, nas condições de elegibilidade. Mas este janeiro, a senhora ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) trataram de finalizar esse desígnio: a FCT abriu o seu concurso de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos, exceto que, afinal, esse concurso não é para todos os domínios”.

O argumento era o esperado. Dada a qualidade de alguma da investigação fundamental, como parece ser o caso das ciências neurológicas que creio ser o domínio científico do Professor Jorge Almeida e tendo em conta que, a nível europeu, existem organismos financiadores da ciência, como o ERC, têm reforçado o apoio à ciência fundamental, a opção nacional tem sido segundo o investigador a de valorizar a investigação aplicada e, assim, “matar” a fundamental.

A perspicaz jornalista Teresa Firmino cavalga o tema e assina no dia 18 de março a continuação deste depoimento de Jorge Almeida analisando mais de perto o mais recente concurso da FCT, o tal que pareceu de vez assumir a opção pela investigação aplicada. Trouxe para a reflexão um outro artigo o de Rita Covas e Martim Melo (U.Porto), de Sara Magalhães (U.Lisboa) e Marta Moita (Fundação Champalimaud), que alinha pelo mesmo diapasão.

Nada que não tenha antecipado no meu argumento. Penso que subjacente a este problema estão duas dimensões que é necessário interrelacionar. Primeiro, a forte dependência do financiamento da ciência e tecnologia portuguesa dos Fundos Estruturais coloca o governo e as instituições portuguesas, sejam elas de ciência ou de transferência de tecnologia, perante uma realidade nua e crua. Nesse modelo de financiamento, a transferência de conhecimento e tecnologia domina sobre tudo o resto e coloca a investigação fundamental numa situação de forte penalização futura, que fica quase dependente do acesso competitivo aos fundos do ERC ou de caminhos similares. Segundo, pressupondo, e disso estou certo, que existe em Portugal investigação fundamental de elevada qualidade e elevado impacto societal (por exemplo o já referido exemplo das neurociências), teria sido necessário colocar democraticamente a questão à sociedade portuguesa nos seguintes termos: está Portugal consciente que deve apoiar essa investigação fundamental de excelência, garantindo-lhe fundos próprios de financiamento que não a coloquem em situação concorrencial desleal com a investigação aplicada com elevado potencial de transferência de conhecimento?

Entendo que a não formulação das duas questões coloca o futuro da investigação fundamental em Portugal numa condição de grande vulnerabilidade.

Podemos contra-argumentar que, em certos domínios da investigação fundamental, existe um elevado risco de que o retorno social dessa investigação não permaneça no país e que países de maior dimensão possam valorizar esse conhecimento. Na altura, recordo-me que em conversa com Alexandre Quintanilha veio à baila a necessidade de envolver o sistema público de saúde nesta equação, permitindo que a inexistência de tecido empresarial capaz de absorver esse conhecimento fosse compensada pela transferência de conhecimento para o sistema público e privado de saúde de modo a garantir que o retorno societal permanecesse em Portugal.

Por conseguinte, em meu modesto entender, não é estritamente necessário condenar alguma da investigação fundamental portuguesa a uma morte precoce ou à diáspora dos investigadores que a suportam com qualidade. Mas para isso há que chamar as coisas pelos nomes e ter uma validação política democrática.


Estas questões são como as cerejas e um outro grande editor de ciência e tecnologia, Victor Ferreira, assina hoje no público (19.03.2024) um curioso artigo sobre o significativo aumento (triplicação) do número de pedidos de patentes europeias registadas numa década (recorde de 329 patentes europeias em 2023), com a economia da saúde a liderar essa dinâmica de crescimento. E as Agendas Mobilizadoras do PRR estão ainda longe de frutificar nesta direção. O artigo de Victor Ferreira traz abundantes elementos de interesse para compreendermos esse outro lado da evolução da ciência e tecnologia em Portugal: o aprofundamento da transferência de conhecimento e tecnologia e o registo de patentes, que foi sempre considerado o calcanhar de Aquiles nacional nesta matéria.

Como é óbvio, não será por acaso que temos em dois dias o recrudescimento deste debate. Daí o meu desabafo, finalmente chegou, mas a más horas e sem debate democrático politicamente validado.

Atrevo-me a imaginar que iremos assistir nos próximos tempos a uma forte tensão entre as ciências da vida (com predomínio de conhecimento analítico) e as ciências da engenharia (dominância de conhecimento sintético), que são os protagonistas principais desta tensão e na prática deste debate que finalmente chegou.

Entretanto, para meu desgosto pessoal de menoridade evidente, as ciências sociais parecem longe de tudo isto e antes encerradas, direi manietadas, em comissões independentes, necessárias obviamente, de investigação sobre situações de assédio e de abuso de poder, em torno das desventuras do que Susana Peralta designava estoicamente de “macho coimbrão”.

Aliás, muito boa gente, como o Amigo José Madureira Pinto o diria melhor do que ninguém dado o rigor da sua investigação, há protagonistas que fazem muito pouco por dar honra e dignidade à dimensão das “ciências” contida na designação ciências sociais.

É o que temos e vamos ao debate democrático sério. A investigação fundamental portuguesa não tem necessariamente de desaparecer.

 

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