(Algo de paradoxal acontece com a contínua frustração sobre o crescimento económico anémico e/ou irregular que tem caracterizado as sociedades democráticas ocidentais, num âmbito que transcende bastante a manifestação do problema cá pelo burgo. O paradoxo a que me refiro tem uma fácil explicação. Não abundam de facto os referenciais históricos sobre os quais podemos tecer comparações e orientar a superação da nossa frustração. Senão vejamos. No plano mais recente, esses referenciais são geograficamente localizados mais a oriente e uma grande parte dessas experiências, com a China à cabeça, são tudo menos modelos exemplares de coexistência entre crescimento e instituições democráticas. Olhando mais para o passado, o capitalismo pode invocar como inspiração apenas dois períodos de crescimento assinalável, diferentes na sua natureza e modelo. Primeiro, os cerca de 30 anos de crescimento que precederam a 1ª guerra mundial. Segundo, os cerca de 30 a 40 anos de crescimento dourado que sucederam à devastação da 2ª guerra mundial. O que nos leva a uma primeira reflexão algo traumática. Por um lado, um dos referenciais, o asiático, desenvolve-se em ambiente globalmente não democrático, de capitalismo de estado em regime comunista ou em regimes bastante iliberais. Por outro, quanto aos referenciais ocidentais um culminou numa guerra mundial e o outro nasceu de uma outra guerra mundial. Por isso, esta fixação ocidental pelo crescimento dá-me que pensar. Quanto aos referenciais asiáticos a eles já me referi em alguns posts. Vamos deixá-los por agora a marinar e aliás o interesse mais recente anda mais pelo segundo tipo de choque que a economia chinesa está a atravessar do que propriamente de pasmo perante o desempenho do crescimento. Quanto ao crescimento dourado dos anos 50 e 60, ele tem sido o mais estudado, sobretudo devido a ter sido nesse contexto que a social-democracia foi construída. Os trinta anos de 1870 a 1914 continuam a ser os mais enigmáticos e, por isso, a eles dedico hoje alguma reflexão, essencialmente à boleia de dois economistas – o ainda vivo e proativo Bradford DeLong, autor do inspirador Sloughing Towards Utopia e o sempre vivo e presente Keynes, um dos maiores estudiosos desses 30 anos.)
A inspiração interpretativa de Keynes vem de uma das suas mais interpelativas obras, The Economic Consequences of the Peace (1919), através da qual ele relata os seus esforços gigantescos para convencer os vencedores da 1ª guerra mundial de que a manutenção do equilíbrio mundial e a possível continuidade dos 30 anos de crescimento iniciados em 1870 exigiria que a Alemanha não fosse obrigada a pagar indemnizações acima da sua capacidade real para o fazer. No prefácio da edição que utilizo (Skyhorse Publishing de 2016), o famoso economista americano Paul A. Volcker, que chegou a dirigir o Banco Central Americano refere que a citada obra deveria ser o companheiro fiel de todos que aspirem a conhecer em profundidade a economia mundial. Keynes, apesar dos seus esforços e da sua inteligência argumentativa, não ganhou esse debate e há quem interprete as indemnizações exigidas à Alemanha de então como uma das causas da perturbação económkca que haveria de conduzir o país à ascensão do nazismo.
No capítulo II dessa obra (Europe before the war), Brad DeLong vai buscar os mais relevantes ensinamentos de Keynes acerca dos referidos 30 anos de crescimento, sendo por isso de leitura obrigatória para compreender o caráter inusitado e não repetido desse período de crescimento, já que, como o referi, os anos 50 e 60 relevam de um outro contexto de regulação, que designo de intervencionismo esclarecido.
O período de crescimento em questão constitui de facto um período inigualável de aumentos de escala de produção, na agricultura e na indústria: “(…) Com o crescimento da população Europeia havia um maior número de emigrantes, por um lado, para trabalhar o solo dos novos países e, por outro, mais trabalhadores estavam disponíveis na Europa para preparar os produtos industriais e os bens de capital que conservariam as populações emigrantes nas suas novas casas e construir os caminhos de ferro e navios que tornariam acessíveis à Europa os produtos alimentares e as matérias-primas a partir de fontes longínquas”.
Mas, na interpretação de Keynes, num universo em que a maioria da população trabalhava no duro e tinha ainda um nível relativamente baixo de conforto e que só os homens de capacidade acima da média podiam aspirar nas classes médias e altas a um nível superior de conforto, o traço estrutural mais importante era fornecido pela espantosa capacidade de acumulação que o período assinalado revelou: “(…) a Europa era organizada social e economicamente de modo a garantir a máxima acumulação de capital. Enquanto se observava alguma contínua melhoria das condições diárias de vida da massa da população, a Sociedade estava organizada de maneira a orientar a maior parte do aumento de rendimento para o controlo da classe que teria menos probabilidade de o consumir. Os novos ricos do século dezanove não eram dados a grandes despesas e preferiam o poder que o investimento lhes proporcionava aos prazeres do consumo imediato”. O que dito por outras palavras, significava que era a desigualdade na distribuição do rendimento a permitir a acumulação de capital e de riqueza que fez a diferença neste período. Não sem surpresa, o referencial asiático do crescimento foi também construído com uma espantosa capacidade de acumulação (taxas de investimento em torno dos 35-40% do PIB).
Keynes vai mais longe e explica o êxito dos 30 anos da utopia económica como o resultado de uma dupla deceção: por um lado, a relativa calma com que a força de trabalho aceitou ter acesso a uma fatia tão pequena do bolo em crescimento, com um esforço imenso de trabalho de massa a viabilizar a construção das grandes infraestruturas como os caminhos de ferro (a revolução de 1917 baralhou os tempos nesta matéria); por outro lado, às classes capitalistas era-lhes permitido ter acesso à fatia grande do bolo mas com a condição dele consumir apenas uma pequena parte.
Não posso deixar de contrapor este estado das coisas “normal, certo e permanente” com o período de frustração de crescimento que a Europa hoje atravessa. Recordo que o “normal, certo e permanente” dos anos 50 e 60 teve uma outra origem, a construção do modelo do Estado Social europeu. Hoje, a desigualdade na distribuição do rendimento não tem, pelos exageros que apresentou, não tem nem de longe nem de perto a virtuosidade que Keynes nela encontrou para explicar os 30 anos após 1870. A ganância substituiu a capacidade real de acumulação. O pacto social de confiança rompeu-se. E o consumo conspícuo é a norma, não a exceção.
Moral da história: os nossos arautos do crescimento deveriam melhorar a sua cultura histórica e, mesmo contrariados, deveriam ler Keynes com mais atenção, embora na sua obra não haja propriamente uma teoria do crescimento.
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