sábado, 16 de março de 2024

POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO: A RELEVÂNCIA DO TERRITÓRIO (TAKE 2)

 


(Retomo o fio à meada da minha próxima intervenção no Conselho Consultivo Estratégico da AMP para a educação e formação, acrescentando o take 2 da minha reflexão. Uma ideia central atravessa esta reflexão. As políticas de educação encontram-se numa encruzilhada e exigirão respostas rápidas e consequentes na sua dimensão nacional. Isso, porém, não dispensa, antes pelo contrário, a inovação na territorialização dessas políticas, que não é mais do que uma forma de descentralização.)

3. A complexidade de uma transição: a maturação do sistema de educação e formação

O documento Estado da Educação 2023, reportado ao ano de 2022 e recentemente publicado pelo Conselho Nacional de Educação, constitui um referencial útil para compreendermos a complexidade da transição a que me refiro e que se prende genericamente com a emergência de um ainda não consolidado sistema de educação e formação.

A simples invocação das seis comissões especializadas que têm funcionado no âmbito do CNE ajudam-nos a focar a referida transição: 1. Currículo; 2. Inovação Pedagógica nas Escolas; 3. Escola e Sociedade; 4. Professores e Outros Profissionais da Educação; 5. Democratização e Desigualdades Educativas; 6. Educação Superior, Ciência e Tecnologia.

Na minha interpretação, a transição para um sistema de educação e formação que alargue o alcance do que até aqui designávamos de “sistema educativo” é marcada por um conjunto de traços estruturais dos quais destacava os seguintes:

  •        A continuada subida das taxas de escolarização para todos os graus da escolaridade obrigatória e também da formação superior, ao mesmo tempo que, finalmente, e por força essencialmente do esforço de qualificação de jovens, a população ativa e o emprego começam a revelar uma subida continuada nos nossos níveis de qualificação, que devem ser vistas em simultâneo com a descida continuada, que não sabemos ainda se é sustentada, das taxas de insucesso e abandono escolar; ou seja, o sistema está a qualificar mais pessoas e com níveis mais elevados de qualificação, incluindo as dimensões mais profissionalizantes;
  •        A progressiva importância e peso do ensino profissional com modalidades de dupla certificação, ainda longe da paridade com a importância dos cursos científico-humanísticos no secundário (60,3% de alunos nos CCH) e com alguns problemas de estagnação (37,8% nas ofertas de dupla certificação em 2021-22) e sobretudo com uma procura social por parte dos jovens e das famílias que, apesar dos progressos já alcançados, ainda não equipara com a da procura dos científico-humanísticos;
  •        A nova realidade dos CTeSP que vai no sentido de reforçar a abrangência do tal sistema de educação e formação, exigindo uma regulação mais intensa;
  •        A influência no sistema ditada pelo declínio demográfico estrutural que atravessa a sociedade portuguesa, com as suas componentes irreversivelmente associadas do incremento da imigração, do efeito sobre o número de jovens e das consequências sobre o envelhecimento de professores;
  •        O impacto que as transições digital (com os desafios ciclópicos da inteligência artificial) e energético-climática tenderão a provocar no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PASEO), por sua vez impactante dos curricula a oferecer nos diferentes graus da escolaridade obrigatória;
  •        As exigências desproporcionadas que recaem sobre a Escola em matéria de respostas a um deslaçamento da vida social e familiar, que acontece num período extremamente ingrato de desvalorização social do papel dos professores e de problemas de desenvolvimento e consolidação de carreiras que se têm arrastado para lá do razoável;
  •        Os desafios crescentes que neste contexto e de importância necessária acrescida de respostas ao ensino profissional que são suscitados em matéria de formação de professores e dos serviços das Escolas de orientação vocacional;
  •        A procura de um equilíbrio entre a formação para a qualificação inicial de jovens e a formação de adultos, sempre pautada pelo objetivo social de reduzir o número dos “left behind”, seja de jovens, seja de adultos empregados ou desempregados;
  •        A pressão crescente para a empregabilidade das formações (em 2022, 81,7% da população entre os 20 e os 34 anos que concluiu um nível de educação igual ou superior ao secundário encontrou emprego 1 a 3 anos depois da sua conclusão), no quadro de uma melhoria generalizada das qualificações oferecidas e da desejável mudança estrutural da economia portuguesa capaz de as absorver.

O Relatório do CNE 2023 encontra numa síntese feliz a adequada expressão de complexidade desta transição:

“Na ordem dos princípios e dos factos, a democratização da educação e a construção de uma sociedade justa, exigem um sistema de ensino equitativo, na dupla aceção de inclusão e de justiça social; uma educação universal, lifelonging, obrigatória e progressivamente gratuita. Os imperativos éticos e os objetivos económicos impõem uma Educação para todos e para cada um, capaz de consubstanciar difíceis articulações: ser acessível, sem descurar a qualidade; constituirse universal, sem obliterar a diferença; atenta às especificidades do local, sem esquecer o global; perene nos valores universais, ainda que flexível à vertigem da mudança”.

4. Territorializar para melhor responder às exigências da transição complexa

A secção anterior mostra, creio que de forma muito assertiva, como a consolidação do sistema de educação e formação tem uma dimensão nacional clara e incontornável, desafiando o futuro das políticas públicas de educação e formação, não esquecendo que parte delas continua a ser largamente financiada no âmbito dos Fundos Estruturais (não esquecendo o esforço de investimento do PRR).

No meu modelo interpretativo, porém, a resposta a garantir ao nível nacional das políticas de educação e formação poderá ser substancialmente melhorada consolidando e alargando o processo de territorialização que, de forma pioneira e desigual em termos de consistência, é certo, tem vindo a ser desenvolvido no âmbito da regulação da oferta de cursos profissionais. Este processo, no qual a Área Metropolitana do Porto tem assumido uma posição de protagonismo e de dianteira, está longe de representar já uma institucionalização assegurada. Nem todas as Comunidades Intermunicipais têm agarrado o processo com o mesmo empenho e capacidade, o relacionamento entre as CIM e os municípios está longe ainda de estar perfeitamente organizado e do mesmo modo a articulação do sub-regional (NUTS 3 /CIM) e do regional (papel das CCDR) apresenta ainda significativas margens de progresso.

Sem ignorar por exemplo o papel relevante que a lógica setorial (nacional) poderá desempenhar na melhoria das condições de ajustamento (matching) entre as qualificações que se oferecem e as competências que são procuradas no mercado de trabalho, sou dos que defende que a territorialização regional e sub-regional é essencial para a concretização de um sistema de educação e formação menos ou exclusivamente ditado pelas forças da oferta de educação e formação e com uma mais intensa plasticidade sistémica na maneira como empresas e empregadores intervêm nesse mesmo sistema.

Talvez nas componentes superiores do sistema (formação superior e avançada) e muito a reboque da crescente importância assumida pelos temas da inovação, talvez se tenha compreendido mais cedo a dimensão estratégica dessa mudança. E não podemos ignorar que o estado da arte inicial não era de todo favorável ou facilitador dessa mudança, já que era conhecida de todos e dos principais relatórios internacionais a escassa comunicação que existia entre o sistema universitário e de investigação e as empresas.

Associo por isso as questões da territorialização das políticas de educação e formação a uma dimensão organizacional do sistema que interpela todos. O facto de se ter começado pelas chamadas qualificações intermédias e pela regulação dos cursos profissionais não é em meu entender por acaso. A dimensão do ensino profissional exige uma profunda mudança da procura social das famílias e dos jovens, dada a dimensão do estigma existente, aliás algo paradoxal num país em que, há bem pouco tempo, em quase todas as conferências e seminários se clamava contra o esquecimento a que o ensino técnico-profissional fora votado.

Embora o processo exija uma capacitação reforçada das CIM e a consolidação dos espaços de concertação territorial que foram ou serão criados em torno da sua atividade, existem condições para se aprofundar a fileira das qualificações intermédias, envolvendo nesses processos por exemplo os CTeSP  e o próprio ensino artístico especializado.

A inventiva e a criatividade dos processos de territorialização encontrarão em cada CIM e nas CCDR as fórmulas mais ajustadas à eficácia da concertação. O período que vivemos, com o enorme desafio das transições digital e climática, é motivador de reflexões prospetivas e de antevisão de necessidades em cuja definição se consiga uma participação alargada.

Haverá no entanto que resistir à tentação da homogeneização precoce destes processos. As CIM que iniciaram o processo não podem ser penalizadas pelo atraso dos outros. A territorialização não deixa de ser uma forma de descentralização.

E esta como bem sabemos quando iniciada pode transformar-se num processo a diferentes velocidades e por isso conduzir a desiguais formas de maturação organizativa.

Mas qual é afinal o problema?

 

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