Sento-me ao computador para finalmente tentar exprimir alguma coisa do que me vai passando pela cabeça na sequência dos traumáticos resultados eleitorais de Domingo passado. Um esforço que, dadas as circunstâncias, é largamente mais penoso do que agradável, mas ao qual sinto dever dedicar-me por consideração a quem de há muito nos lê e por necessidade pessoal de autodisciplina e arrumação reflexiva. Uma apreciação iniciática em que procurarei fugir do trivial e deslizante calculismo do comentadorismo de curto prazo para me focar no que se me afigura obrigatório e societalmente útil; serei, todavia, sintético.
São três os meus pontos interpretativos principais, um de tipo histórico-estrutural, outro do foro dos desatinos conjunturais e um último de natureza enquadradora ou sistémica. O primeiro tem sobretudo a ver com a dinâmica político-partidária destas décadas da democracia portuguesa e integra um vasto conjunto de tópicos relacionados com o crescentemente anquilosado e desviante funcionamento dos partidos ― tornados máquinas desligadas da virtude formativa que era suposto incumbir-lhes e máquinas alimentadoras de nepotismos tão exasperantes pela incompetência associada quanto socialmente afastativos perante o espraiar do modelo ― e com a arrogante afirmação de uma pretensa autonomia da esfera política e das lógicas incorporadas pelos seus profissionais ativos e passivos (algo qualificável como próximo do que se vai chamando “a bolha”). Uma desgraça cuja responsabilidade tem de ser irmãmente assacada aos dois grandes protagonistas do bipartidarismo português, o PS e o PSD, aos quais se exigiria a decência de uma profunda autocrítica seguida de um assumido arrepiar de caminho; o que não parece em vias de ocorrer, diga-se.
O segundo ponto tem sobretudo a ver com o “costismo” que imperou nos últimos oito anos e que ― a despeito de alguns resultados importantes (com destaque para as ditas “contas certas” e o seu enorme impacto positivo para a economia portuguesa em termos de credibilidade externa e de acalmia dos sacrossantos mercados) e/ou de encher o olho (i.e., sem se fazerem sentir significativamente no quotidiano dos cidadãos, do crescimento ao emprego, do salário mínimo às pensões, do abandono escolar às qualificações) ― não apenas nasceu do marcado instinto de sobrevivência política do seu agente central como se deixou levar por uma atitude antirreformista primária que começou por vingar nos forçosos e inibidores compromissos da “geringonça” e acabou por se fixar com irritante otimismo e arrogante estrondo nos tristes anos do “habituem-se” e da maioria absoluta delapidada. Uma desgraça cuja responsabilidade tem de ser assacada a António Costa, independentemente dos seus inequívocos méritos em termos de perspicácia e capacidade negocial, mas a que não devem escapar em doses agravantes outros membros da chamada “classe política”, entre aquele que comandou ao detalhe a tramitação e o desenlace da atual crise política, os que estiveram no centro das grandes decisões nacionais neste primeiro quartel do século XXI (desde logo, o Durão que fugiu e se orientou por conta própria, o Sócrates que encantou e depois enganou e o Passos que admitiu poder ganhar asas se optasse por avançar, sem dó nem piedade, para mais além do que lhe era reclamado) e algumas “múmias” ressabiadas (com Cavaco à cabeça, mas não só) vindas de um passado já demasiado longínquo e notoriamente irrelevante por incomparável, não esquecendo ainda as nossas queridas mas desfasadas e interesseiras elites sociais e empresariais (assunto que, por si só, mereceria um mais cuidado tratamento exclusivo).
O terceiro e último ponto tem sobretudo a ver com a mudança experimentada pela sociedade portuguesa ao longo de todos estes anos em que “a bolha” permaneceu impávida e serena perante os sinais que se lhe iam apresentando nas mais diversas áreas e muito em função de um mundo atravessado por mudanças drásticas e irreversíveis. Sendo que um aspeto nuclear daquela mudança decorria, antes de mais, da simples passagem do tempo e das correspondentes implicações em termos de posicionamento geracional, matéria em que necessariamente deveriam ter-se tornado dominantes a mundividência dos setores mais jovens e qualificados da população e as correspondentes expectativas e aspirações inatendidas. Temas como a valorização da individualidade e da iniciativa versus do bem comum e da solidariedade ou da dicotomia esquerda-direita versus de fracionamentos alternativos por mais adaptados aos novos tempos, assim como a tomada em consideração primordial dos hábitos e modos de vida associados a dimensões imparáveis da modernidade (para apenas focar uma, atente-se no papel das redes sociais na formação de opiniões e opções políticas e outras versus a tendencial ou abrupta quebra das televisões e dos jornais, com a inerente perda de influência por parte dos reativos analistas tradicionais e da “bolha”), teriam de ter sido crescentemente chamados à colação para que o diagnóstico do descontentamento que grassa, com laivos de revolta e/ou indiferença, naquelas camadas sociais essenciais (como em outras igualmente carecidas de atenção e atendimento, na linha que hoje se estrutura em torno da ideia de “não deixar ninguém para trás”) pudesse ter sido apropriadamente percebido por quem de direito e assim integrado e desejavelmente invertido. E como assim não aconteceu, o que resulta agora visível resume-se a que a desgraça surgida estava, afinal, muito claramente escrita na pedra.
E quanto a caminhos de solução? Aqui, a coisa fia mais fino; ou seja, não me sinto em condições de arriscar grandes palpites. Pela afirmativa, e de ciência certa, o meu convencimento vai no sentido de que nada de determinante por cá ocorrerá sem uma reconversão séria dos termos em que vimos funcionando, todos e cada um; impõe-se-nos forçosamente a adoção de um chip novo e coletivamente abraçado, algo que passe por uma cabal e decidida mudança de vida ― na política, na justiça, na economia, na educação e ciência, em todos os demais domínios da sociedade. Pela interrogativa, encaro os taticismos politiqueiros que se desenham e avolumam com a grande preocupação de que possamos vir a chocar de frente com graus insuportáveis de inércia e instabilidade, isto num momento em que do exterior que nos envolve e condiciona apenas nos chegam prenúncios de más notícias; daí que quase me sinta empurrado para desligar o botão do “politicamente correto” em construção e subscrever os termos substanciais da pergunta de Eduardo Marçal Grilo nas páginas do “Público” (“será que o entendimento entre PS e PSD só vai ser possível quando tivermos uma guerra que nos afete de forma significativa?”) e o desabafo que dela emerge: “não consigo compreender”. Porque, considerados todos os riscos políticos a vencer e objetivamente encaradas as reais limitações das convergências alternativas, nada mais nos resta para que possamos ir à procura de um rumo que nos salve.
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