terça-feira, 5 de março de 2024

A ECONOMIA INTERROGA-SE

 


(Os tempos parecem estar a mudar. A editora da mais popular revista do Fundo Monetário Internacional, a Finance & Development, Gita Bhatt, assina no blogue da instituição um vigoroso artigo que apresenta o número especial de março de 2024 da referida revista. O artigo tem a curiosidade de citar no seu início uma das mais famosas passagens de John Maynard Keynes, na qual ele afirma que os economistas mais importantes deveriam possuir um conjunto diversificado de dons, devendo ser matemáticos, historiadores, homens de estado e filósofos. Já entenderam a malícia da minha referência. Quando a revista mais popular do FMI cita Keynes e atribui aos economistas de topo uma exigência que está muito longe de ser atingida no interior do chamado mainstream dos economistas e da economia algo está a mudar. Claro que podem dizer-me que a Finance & Development segue o conhecido preceito Lampadusiano de que algo tem que mudar para ficar tudo na mesma. A revista alvitraria que há mudanças em curso, mas sabe que a força do mainstream é poderosa e que porventura a heterodoxia não passará disso. Ficará nas margens. De facto, a heterodoxia em economia nunca desapareceu efetivamente da circulação. Em diferentes momentos da história, quando a ciência económica no seu corpo principal se revelou incapaz de compreender as mudanças que se concretizavam lá fora, ou seja no exterior dos seus modelos e na incómoda realidade, a ideia de que agora as coisas seriam diferentes emergiu frequentemente ao longo do tempo. Assim, por exemplo, não foi certamente por acaso que um óbito precoce à influência da obra de Keynes foi passado. Dei aulas em tempos em que era extremamente difícil falar de Keynes aos alunos, já que a sua preparação inicial fora concretizada com a ideia de que esse óbito seria definitivo. Sabemos que a ressurgência da importância e influência de Keynes também não foi obra do acaso. Outras heterodoxias apareceram sucessivamente, embora sem a força simbólica e intrínseca de Keynes e ainda esperamos a revolução numa ciência que alguns já classificaram de “dismal science”.)

Nas 70 páginas da Finance&Development de março de 2024, por isso fresquinha, temos um vasto material apelativo para compreender a necessidade de mudança. E também não será por acaso que o título da revista é o seguinte: “Economia – deverá ela mudar?”. A confusão terminológica é propositada. Sabemos que a economia está ela, a realidade, efetivamente a mudar como sempre, aliás. O que se pergunta é se a disciplina que a deveria explicar deverá ela também mudar para cumprir o seu papel e não permanecer no eterno vício de que a realidade é que tem de se ajustar aos modelos e não o contrário.

O material da revista é muito diversificado, começando pela intervenção de um grupo muito diversificado de economistas, Angus Deaton, Diane Coyle, estes dois de forte contundência de heterodoxia, Jayati Ghosh, Atif Mian (um expoente da análise das crises financeiras), John H. Cochrane (um heterodoxo entre os ortodoxos da economia financeira) e Michael Kremer (com ampla investigação na economia dos recursos naturais).

A ideia de que a diversidade de valores e de fatores de complexidade das sociedades deve atravessar a revolução disciplinar atravessa todo o número, com uma enorme diversidade de perspetivas: a importância da política para valorar coisas que a economia não consegue medir (Jeffry Frieden), a resposta aos problemas económicos com ampla integração do contexto em que se busca a solução (Dani Rodrik), a necessidade de trabalhar com um outro modelo de determinação dos salários (Suresh Naidu), a procura de novas medidas do bem-estar (Andrew Stanley), o chamado crescimento inclusivo (Ruchir Agarwal), a emergência climática (Kate Raworth) e o novo ensino da economia (Wendy Carlin, expoente do grande projeto Core Economics de um novo manual de economia para o nosso tempo) são exemplos do valioso material que justifica a leitura por inteiro de toda a revista.

Podemos dizer que o facto da heterodoxia penetrar os espessos muros de uma organização internacional como o FMI é um sinal promissor, mas os meus 50 anos de contacto profundo com a heterodoxia económica (a questão do economista atípico) aconselham-me prudência. Olhando para trás, em várias ocasiões ao longo do tempo fiz observações do mesmo género e, apesar disso, a revista põe de novo o dedo na ferida, que não curou saudavelmente, antes revelou novas perversidades. Isso explica-se porque o ensino da economia não se transformou significativamente (só agora o Core Economics faz o seu trajeto) e também porque a reprodução do conhecimento (enquadramento da nova investigação e meritocracia das publicações) se tem mantido fiel ao mainstream e à sua permanente reprodução.

Ou seja, no jogo do poder, a heterodoxia tem sido subjugada. O lema é simples: se queres ser heterodoxo em economia, podes sê-lo. Mas prepara-te para pagar um preço bastante alto, a tua progressão na notoriedade pública e entre pares não será a mesma se não seguires o mainstream e nele te destacares.

Simples, não é? E também algo aterrador!

 

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