terça-feira, 5 de março de 2024

REVELANDO UMA INSPIRAÇÃO

(cartoon de Luis Grañena, https://elpais.com) 

Duas palavras têm dominado o discurso de Pedro Nuno Santos (PNS) desde que ascendeu ao lugar de secretário-geral do PS e, subsequentemente, à candidatura a primeiro-ministro de Portugal: humildade e empatia (em-pa-tia, enfatiza ele amiúde!). Com efeito, e quase invariavelmente, as intervenções de campanha de PNS seguem um guião em que, após sublinhar o “orgulho no que fizemos”, se apontam aquelas duas caraterísticas como a base do que é a atitude distintiva dos socialistas e do que deve ser a linha condutora do seu novo PS para reconhecer que é preciso fazer mais e assim dar um “novo impulso” ao País.

 

Cito abaixo, a partir de um comício recente, as suas afirmações relativas à humildade que deve caber a quem governou oito anos mas admite que não resolveu os problemas todos e que algumas soluções foram erradas e à empatia de quem sabe que “o primeiro passo para resolver os problemas dos portugueses é criar uma relação com quem está zangado”.

 

Quanto à humildade: “E nós sabemos que nós não fizemos tudo bem. E nós sabemos que nós não fizemos tudo aquilo que devia ser feito. Nós temos a humildade para reconhecer. A humildade de aprender, a humildade de ouvir, a humildade de reconhecer que há muito para fazer em Portugal, a humildade de reconhecer que nós ainda temos problemas.” Ou, dito de outro modo: “há coisas que não correram como era esperado, há coisas que devíamos ter feito e não fizemos, há coisas que fizemos bem e que devem continuar, há coisas que têm de mudar”, sobretudo porque “nós queremos fazer novo, queremos fazer diferente.”

 

Quanto à empatia: “Porque nós temos outra caraterística que nos distingue deles, que é a empatia. Eu falo muito desta caraterística porque ela nos distingue deles. A capacidade que nós temos de sentir o que o outro sente, a capacidade que um socialista tem de se colocar nos pés do outro, de perceber, de sentir os problemas do outro. Foi sempre assim que nós governamos, seja nas autarquias ou no País. Com empatia e humildade, são dois valores dos socialistas.”

 

Acontece, a meu ver, que este guião mais não é do que uma versão grosseira, ou aligeirada para efeitos políticos, da mais substantiva formulação de princípios que PNS apresentou no seu discurso ao Congresso. Senão vejamos: “O que faz de nós socialistas democráticos? Para onde aponta a nossa bússola moral? O que vem afinal antes de tudo o resto? Para mim é claro: os valores morais da empatia, da cooperação, da generosidade, do respeito mútuo, da reciprocidade nos laços que mantemos com os outros e com os seus problemas, com os problemas da comunidade. Estes são os nossos valores primeiros. Com eles escrevemos a nossa constituição moral, são eles que ligam as nossas razões às nossas emoções. Mas estes valores têm de ter tradução concreta, o que lhes dá força é mesmo o facto de nos ajudarem a compreender e a agir aqui e agora.” Ao que acrescentou de seguida: “O primeiro passo para compreender o mundo é aceitar, com humildade, que enquanto seres humanos vivemos em interdependência, que desligados dos outros somos mais vulneráveis e que precisamos dos outros para agir. É por isso que aprendemos a cooperar, a fazer coisas em conjunto. É isso que a expressão ‘a união faz a força’ quer dizer, que é através da união, da cooperação que os fracos se tornam fortes. É da cooperação, da reciprocidade, da empatia que nasce uma comunidade nacional. Com quem partilhamos uma História e com quem construímos um futuro. Uma comunidade que nos confere direitos e liberdades mas que também nos impõe deveres e obrigações. (...) É a tomada de consciência que vivemos numa comunidade nacional que nos pode ajudar a transformar para melhor a nossa vida individual e coletiva. É também esta visão que nos separa da atual Direita que, ao defender o lema do ‘cada um por si’, organiza o mundo em função de uma competição geradora de poucos vencedores e muitos vencidos. Para nós, os problemas resolvem-se mais através da cooperação do que da competição e mais através da ideia de responsabilidade recíproca do que da meramente individual. É por isso que, para nós, os problemas dos outros são os nossos problemas, são os problemas de todos. Por terem problemas, as comunidades, cooperamos para os resolver. E por serem problemas da comunidade, quando os resolvemos a vida de todos e de cada um melhora.”



E é aqui que entra um professor de Filosofia Política da Universidade de Harvard, Michael J. Sandel de seu nome. Porque a verdade é que, se lermos as suas duas mais recentes obras traduzidas para português (uma originalmente datada 1996 mas republicada com acrescentos em 2022, “Democracy’s Discontent”; outra bem mais recente e datada de 2020, “The Tyranny of Merit”), rapidamente percebemos que o seu pensamento constitui a principal fonte de inspiração de PNS (outras existem igualmente em outros domínios). O que só pode ser aplaudido, quer por demonstrar que este está atento a algumas das dinâmicas intelectuais que marcam o mundo atual quer por evidenciar o seu interesse e capacidade para incorporar essas dinâmicas na renovação do discurso do partido que lidera. Em “Democracy’s Discontent”, Sandel trabalha de modo muito articulado a questão da “coexistência desconfortável” em que vivem o capitalismo e a democracia, apontando a “economia política de cidadania” como uma tentativa de conciliação entre a organização da atividade produtiva para o lucro privado (capitalismo) e a capacitação dos cidadãos para participarem na autodeterminação (democracia) e remetendo a sua desconsideração para o baú do empobrecimento da compreensão do que é ser um cidadão (sentimento de pertença e envolvimento cívico) e do descontentamento que vem grassando nas sociedades democráticas, explicitando ainda que uma tal versão do capitalismo “consiste em três conjuntos de práticas e crenças que se reforçam mutuamente: globalização, financeirização e meritocracia”.

 

Deixo necessariamente de lado uma enorme série de insights brilhantes, instrutivos e deliciosos que bem justificam uma manipulação cuidada dos livros referenciados. Para me focar, a concluir, na investigação que Sandel desenvolveu em torno do primado do princípio do mérito enquanto um dos responsáveis pela situação de crise que atinge as economias liberais, a qual surge explanada detalhadamente no seu “The Tyranny of Merit” (“rumo a uma política do bem comum”). E é aqui que, muito curiosamente, emergem com toda a força as duas palavras-chave acima mencionadas.

 

Cito: “A crença meritocrática de que as pessoas merecem todas as riquezas que o mercado lhes possa outorgar em razão das suas capacidades torna a solidariedade uma proposta quase impossível. Por que razão as pessoas bem-sucedidas devem alguma coisa aos membros menos favorecidos da sociedade? A resposta a esta pergunta depende de reconhecermos que, por muito que nos esforcemos, não somos completamente autossuficientes; viver numa sociedade que aprecia os nossos talentos é um acaso da fortuna e não um mérito próprio. Um sentido agudo das contingências da vida pode inspirar uma certa humildade: ‘Poderia ter sido eu, se a graça de Deus ou as circunstâncias de nascimento não tivessem decidido de outra maneira’. Tal humildade é o início do caminho que nos traz de volta da ética brutal do sucesso que nos separa. Aponta para além da tirania do mérito, para uma vida pública menos rancorosa e mais generosa.” E, por outro lado: “Se o meu sucesso é obra minha, o fracasso dos menos afortunados deve ser culpa deles. Esta lógica tem um efeito corrosivo sobre a comunidade. Uma noção demasiado exigente de responsabilidade pessoal pelo nosso próprio destino impede-nos de empatizar com os outros.”

 

Humildade e empatia, pois. Conceitos e práticas a merecerem um debate sério no seio de um Partido Socialista conceptualmente anquilosado e socialmente envelhecido.

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