quinta-feira, 7 de março de 2024

ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS

 

(Há personalidades que marcam o nosso entorno cultural e político, com as quais nunca contactámos presencialmente e que, não obstante essa ausência de proximidade e interação real, deixam quando desaparecem uma sensação de que o tempo vai ser outro. Esta é no meu caso a sensação que alimento com a morte de A-P V. Dizia ontem o cineasta Luís Filipe Rocha num canal que creio era a RTP3 que o A-P V era a verdadeira expressão do intelectual à antiga, tamanha era a sua propensão para fazer cinema não para uma minoria informada mas não desistindo de conquistar público para a sua obra e a sua propensão para a intervenção cívica. Nem sempre estive do lado de A-P V nas suas batalhas cívicas, uma que entendi ser demasiado quixotesca para meu gosto foi a da TAP, mas este estatuto de produzir cultura e animar civicamente o debate público faz parte da minha conceção de intelectual ativo e interveniente que o cineasta agora desaparecido tão bem personificava. O purismo intelectual que existe por aí disseminado não apreciava muito o esforço de A-P V de levar o cinema a um público mais alargado, entendendo que esse alargamento teria de ser feito à custa de compromissos empobrecedores da qualidade da obra. Outras personagens como Fonseca e Costa no cinema e António Vitorino de Almeida na música foram penalizados por essa tentativa similar à de A-P V de escapar aos guetos culturais para minorias esclarecidas. Em meu modesto entender, a filmografia de A-P V mostra como essa abertura a um público mais alargado, como o foi por exemplo a explosão de espectadores com o Lugar do Morto, escapou quase sempre a esses compromissos de cedência ao facilitismo. Nessa medida, os filmes de A-P V ajudaram os portugueses a ouvir a sua língua na tela e precipitaram uma nova geração de novos cineastas. Porque raio de razão a filmografia de um país não pode acolher trajetórias tão diversas como a de A-P V e a do rigor de Pedro Costa?)

Em modo de procura de analogias, diria talvez com algum exagero que o desaparecimento de A-P V está para o cinema, como o de Alexandre O’Neil esteve para a poesia. Ambos se movimentavam num imaginário lisboeta em completa extinção.

Da personalidade e da riqueza das suas contradições falam hoje os jornais com competência e diversidade. Destaco, por exemplo, a crónica de Vasco Câmara no Público acerca da inesquecível tomada de posição pública de A-P V na televisão pública sobre o JE VOUS SALUE MARIA de Godard, perante os gritos ensurdecedores do tradicionalismo comandado por Kruz Abecassis. Mas muitos outros ângulos da riquíssima personalidade de A-P V têm vido a lume em diferentes crónicas.

Para terminar, teria de relembrar que só uma personalidade fascinante como a do cineasta agora desaparecido inspiraria uma ponta de humanidade a uma Maria Filomena Mónica (ver texto no Público). E imagino também como, acaso a doença o tenha permitido, A-P V terá vivido com tristeza definitiva a derrocada encarnada no Dragão.

E um grande vazio se abre na esfera cultural e cívica portuguesa.

 

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