sábado, 9 de março de 2024

CONVIVIALIDADE, URBANISMO E HABITAÇÃO

 


(O perspicaz Noah Smith assinou recentemente no seu blogue uma cativante reflexão sobre o urbanismo japonês, que pode ser lido aqui (como sou assinante é provável que o acesso não seja totalmente livre). Como infelizmente o meu conhecimento presencial e vivido das cidades japonesas é nulo, a leitura do artigo suscitou-me reflexões cruzadas aplicáveis aos mundos urbanos a que tive acesso. Como o meu estatuto de viajante está longe de ser muito entusiasmante, o mundo de referências urbanas é relativamente limitado à Europa e aos EUA e mesmo este relativamente limitado a cerca de vinte e tal dias de estadia em três diferentes viagens (Chicago é a minha grande lacuna). A reflexão de Smith é curiosa pois parte de uma evidência, a da comparação entre a área média das habitações no Japão e nos EUA, evoluindo depois para uma conclusão que considero muito relevante. Segundo ele, por si só essa comparação diz pouca coisa, se a questão do urbanismo de entorno e de integração desse parque habitacional. As minhas referências para entrar nesta questão são as da convivialidade urbana, que é um conceito difícil de operacionalizar, mas que abrange a combinação de várias questões que se entrelaçam entre si e que, por isso mesmo, são de muito difícil integração. Entre essas variáveis estão obviamente dimensões como a da característica da própria rua em que vivemos, muito na sequência da prosa incontornável de Jane Jacobs, a amplitude e natureza do espaço público, as questões da proximidade aos serviços públicos, a mobilidade, o modelo das relações casa-emprego. Percebe-se a complexidade do problema. É sobre ela que ouso ensaiar algumas reflexões depois da leitura da aproximação ao modelo de urbanismo japonês de Noah Smith.)

Dois grandes fatores pesam contribuindo para a complexidade da operacionalização do que entendo ser a convivialidade urbana.

Primeiro, nunca se planeia urbanisticamente a partir do zero. O tecido e o solo urbano resultam de uma acumulação de políticas e estratégias públicas e privadas no passado. São sempre situações imperfeitas com que nos confrontamos no dia a dia das cidades. Daí que passar ao modelo da convivialidade como objetivo implica sempre superar uma dada transição, criando as condições para uma sucessão coerente de decisões que inspirem e façam os operadores privados seguir a mesma linha de orientação.

Segundo, a eventual promoção pública do espaço urbano não está nunca sozinha e tem de ser combinada com o cálculo económico privado. É óbvio que existe suficiente autonomia política para concretizar uma política de espaço público urbano e esperar que a partir daí possamos influenciar o investimento privado fazendo das cidades algo de mais convivial. No caso português, há uma subquestão a considerar que é o facto das grandes infraestruturas de transporte público urbano, caso do metropolitano na Área Metropolitana do Porto ou de Lisboa (em Vila Nova de Gaia assistiremos nos próximos anos a uma profunda alteração das condições de localização de nova habitação induzidas por exemplo pela nova linha de Santo Ovídio à Boavista, que passará muito perto da minha atual residência), estarem a ser implantadas já com um grau muito elevado de ocupação urbana. Quer isto significar que as novas infraestruturas de transporte de grande capacidade tenderão a colmatar as derradeiras oportunidades de densificação do espaço urbano.

De qualquer modo, quer o zonamento urbano se limite a indicar o que é que pode ser construído e que atividade aí localizável, quer ele indique expressamente o que é que não pode ser construído (o que parece ser o caso do Japão segundo Smith), a densificação urbana com mistura de usos parece ser uma arte claramente diferenciadora da convivialidade urbana. Por mais atrativas e espaçosas que possam ser as habitações disponibilizadas em zonas exclusivamente residenciais, esse modelo de urbanismo dificilmente conduzirá à intensificação da convivialidade. Antes pelo contrário, favorecerá a viragem para dentro, as preocupações securitárias, a ausência de interação humana e a emergência de situações de “nós contra os outros”. O problema é que a densificação urbana multiusos e multifuncional não tem receitas prescritas, resulta de uma dinâmica a criar, assenta nas atmosferas que irão potenciar o multiusos. As estratégias urbanísticas podem contrariar e desincentivar o zonamento especializado, o residencial, o comercial, o industrial. Mas nunca poderão assegurar a receita para que a densificação urbana multifuncional aconteça. Quantos rés-do chão conhecemos vocacionados para a localização de atividade comercial estão vazios esperando uma procura que nunca se manifesta?

Segundo Smith, as cidades japonesas compensam a baixa superfície média de apartamentos (em vias de aumentar, todavia) com a arte da densificação multifuncional, em que a proximidade entre as habitações e a dispersão dos serviços é a marca diferenciadora.

A vertente da localização industrial do emprego como obedece a diferentes padrões de localização introduz nesta equação novas variantes de difícil coordenação. Eliminar as deslocações casa-trabalho para o emprego industrial é uma simples utopia. Aí mandarão as condições infraestruturais de mobilidade com os transportes de alta capacidade à cabeça. Por isso o metropolitano faz cidade. A utopia de construirmos unidades funcionais de reduzida distância casa-emprego continua a ser o que sempre foi, uma utopia. Outra coisa, é a proximidade aos serviços de conveniência e de utilização mais diária.

 

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