(Estou de férias de Páscoa mas um temporal do arco da velha cujo nome, eles são tantos, já me passou, abate-se nesta tarde sobre o Coura e sobre o Minho, convidando a uma cumplicidade com o aquecimento que já deveria estar em modo de verão, mas que a descida brusca de temperatura aconselhou a manter ativo. Nestas desestimulantes condições de repouso pascal não há maneira de evitar integrar na reflexão diária as peripécias parlamentares da eleição do sucessor de Augusto Santos Silva. Na altura em que escrevo, ainda não foi realizada a votação que testará o acordo celebrado entre o PS e o PSD para uma mais que incerta rotatividade de Presidência da Assembleia da República, pois alguém com alguns dedos de testa não arriscará qualquer prognóstico sobre se a AR aguentará ou não os quatro anos que o acordo pressupõe. É sobretudo atendendo ao caráter simbólico do que pode vir a ser a presente legislatura que os acontecimentos merecem alguma reflexão, já que, aparentemente, a sequência observada de votações e reações põe por terra modelos que haviam sido associados à composição do Parlamento – maioria de direita, modelo dos três blocos e outros do género. Mas vale a pena contar, interpretar e refletir sobre a história.)
Considero bastante suspeitosa a notícia que começou a circular entre os jornalistas mais próximos da sessão inaugural da AR, segundo a qual haveria um entendimento, não se sabia se tácito, se formal, entre a AD e o Chega para eleger Aguiar Branco como Presidente da Assembleia da República. Começo a pensar que alguém tramou “Roger Rabbit”, desculpem Luís Montenegro. Não sei se alguém mais pressuroso na sua entourage que preparou nos bastidores esse alegado acordo, se foi o CDS no seu afã de mostrar que estava de regresso ao hemiciclo e aos corredores que lhe abriu caminho ou se, pelo contrário, a casca de banana veio dos lados do Ventura, que disso e mais é capaz, que fez constar junto dos solícitos jornalistas à difusão da sua mensagem a ideia do tal acordo.
Bom, talvez venhamos a saber quando as comadres se zangarem mais definitivamente se houve ou não acordo, mas a verdade é que os três blocos votaram em coerência consigo próprios e Aguiar Branco por três vezes não obteve a maioria necessária dos 116 deputados. Como seria de esperar nesse modelo de três blocos, a votação de Francisco Assis, proposto quando o PSD parecia querer retirar Aguiar Branco da corrida, foi superior em dois votos à da AD, confirmando o impasse.
Lendo o que se passou entre a noite de ontem e a madrugada e manhã de hoje, o PS terá engendrado uma alternativa um pouco obtusa de propor um acordo rotativo de Presidências, não que alguém de boa mente acredite que a Assembleia aguentará quatro anos, mas que lhe permite fazer o género da contribuição para a normalidade das instituições, não endossando um apoio sem contrapartida ao PSD – a rotatividade seria afinal essa contrapartida de salvação da face.
A crónica dos eventos subsequentes (repito até à nova votação de hoje das 15 horas) é uma espécie de crónica antecipada do que teremos pela frente, senão vejamos:
· O PS, sobretudo pela voz de Francisco Assis, incomparavelmente mais esclarecido e incisivo do que o “engonhas” Brilhante Dias, veio defender a sua disposição de, em assuntos constitucionais e institucionais de defesa da democracia e não de assuntos programáticos, como este o é claramente, poder apoiar a AD seletivamente;
· O inflamado Chega veio obviamente tentar mostrar que o acordo da rotatividade é a prova provada de que será a “oposição” no Parlamento, capitalizando em seu proveito esta aproximação entre os dois maiores partidos;
· Os restantes partidos democráticos, fora do acordo, vieram obviamente zurzir na solução, apontando sobretudo a dissolução possível (Rui Tavares) como o melhor argumento de que o acordo não é um acordo sério;
· E bem pior do que isto tudo, a grande generalidade dos jornalistas usou em modo nauseabundo a tese do Chega para tentar encostar à parede dos microfones o PS.
É sobre este último ponto que gostaria de avançar com a reflexão final. Quanto ao acordo, a partir do momento em que o PSD cometeu o erro grasso de não preparar a votação, ele não é ótimo, mas antes incerto, mas se funcionar resolve o problema do início dos trabalhos e isso para mim basta. Mas a perversidade não está aí. A perversidade manifesta está na chantagem que se abateu (com os jornalistas como seus principais veículos) sobre o PS, argumentando que qualquer apoio do PS, mesmo de que natureza simplesmente institucional, à AD deve ser entendido como um favor ao Chega e à sua estratégia de monopolizar a oposição. Estou pasmado com tal alarvidade, sobretudo porque ela brota naturalmente do mau hálito político de Ventura e seus apaniguados e é alegremente disseminada e multiplicada por jornalistas solícitos e compreensivos. Aceitar essa argumentação equivaleria a defender que a defesa do regime democrático contra quem o pretende implodir estaria impedida aos partidos democráticos na AR.
O grau zero da qualidade política e bastou um elefante na sala para o provocar.
Mas que legislatura está na calha!
Imagino que a eleição dos Vice-Presidentes vai ser um segundo round de toda esta tourada.
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