sábado, 30 de março de 2024

A HISTÓRIA NÃO SE REPETE, RIMA, SEGUNDO MARTIN WOLF

 

(Nestas coisas da denúncia da onda autoritária e fascizante que grassa pelo mundo, a memória conta. Por isso, vemos personagens com espessura e consistência como o cronista do Financial Times Martin Wolf como uma das vozes mais preocupadas com a deriva que atravessa as democracias um pouco por todo o mundo. Já o tinha expresso na obra (The Crisis of Democratic Capitalism) que veio a apresentar a Lisboa e que suscitou uma larga repercussão na comunicação social, da qual dei conta em devido tempo. Regressa agora ao tema numa crónica recente no Financial Times, à qual fui buscar a inspiração e título para este post. Começo por citar o último parágrafo do artigo: “O fascismo da Alemanha ou da Itália nos anos de 1920 e de 1930 hoje já não existe, exceto talvez na Rússia. Mas o mesmo pode ser dito de outras tradições. O conservadorismo não é o mesmo de há um século e o mesmo pode ser dito a propósito do liberalismo e do socialismo. As ideias e as propostas concretas das tradições políticas alteram-se em linha com a sociedade, a economia e a tecnologia. Não é surpresa nenhuma. Mas essas tradições ainda partilham um padrão comum de atitudes relativamente à história, à política e à sociedade. Isso é também verdade para o fascismo. A história não se repete. Mas ela rima. E está agora a rimar. Não sejam complacentes. É perigoso pedir boleia ao fascismo”.)

Este conselho do consistente Wolf só é possível de entender se o reportarmos à sua memória da velha Europa e como seria importante que a juventude seduzida pelo apelo antissistema das forças políticas que dele fazem a sua propulsão no eleitorado o ouvissem e compreendessem os perigos de pedir boleia a essa corrente. O risco é obviamente o aviso cair em saco roto e só se aperceberem dos perigos dessa incursão quando a experiência já estiver em marcha.

Como seria de esperar, alguém de tão consistente como Wolf teria de fazer evoluir o seu pensamento em bases sólidas: Humberto Eco e Hannah Arendt são as referências invocadas no artigo e isso bastaria para a leitura ter valido a pena. Para nossa boa sorte, essas referências estão acessíveis on line e ambas derivam da New York Review of Books. Mais substancial a referência de Eco, um artigo sobre a sua curiosa expressão do “Ur-Fascism” (fascismo eterno), ao passo que a referência de Arendt é uma entrevista à referida revista, embora com toda a sua obra sobre o totalitarismo a pairar sobre a mesma, incluindo a já aqui comentada banalização do mal, que mereceu na altura um elevado número de visualizações deste blogue, que me surpreendeu bastante.

Vale a pena recordar os atributos que Eco reconhece existirem no fascismo para compreendermos a sua inspirada versão de que a história não se repete, mas que rima. 

O culto da tradição e o enraizamento do tradicionalismo é a primeira característica e aconselho os leitores que tenham acesso à HBO que visualizem a mini-série THE REGIME com uma fabulosa Kate Winslet para entenderem como a metáfora da pureza da tradição pode ser instrumentalizada a favor da autocracia mais despudorada. Eco mostra como o Fascismo Ur pela rejeição da idade da Razão e do modernismo que transporta consigo pode ser entendido como uma forma de irracionalismo e de desconfiança relativamente ao mundo intelectual. É conhecida a máxima de Goering – “quando ouço falar de cultura tenho a minha arma à mão”.

A segunda característica é a rejeição da diversidade, de maneira a identificar toda a população com a mais comum das identidades, pertencer a um país e a uma nacionalidade, considerando o exterior como inimigo e apelando por essa via à xenofobia. Discordar é uma forma de traição.

A terceira característica do Fascismo Ur é depender da frustração individual ou social.

A quarta característica está relacionada com a rejeição do pacifismo e com a assunção da violência e da guerra como passo necessário para uma solução final de controlo do mundo, em que o princípio da paz desejada contradiz, segundo Eco, o princípio da guerra permanente.

Na quinta característica, o Fascismo Ur confunde-se com o culto do heroísmo, no qual ao contrário das mitologias em que o herói é um ser excecional ele é aqui a norma, associada ao culto da morte. Sempre atento, Eco recorda que a mote dos falangistas em Espanha era o Viva la Muerte.

Como sexta característica, o Fascismo Ur glorifica o machismo, desdenhando das mulheres e promovendo a intolerância para com os comportamentos sexuais que considera desviantes face à norma.

E, finalmente, o povo é concebido como uma entidade monolítica em que os indivíduos não têm direitos e não agem. O líder é o seu intérprete.

O que Humberto Eco nos transmite é que tendo estes princípios do Fascismo eterno em mente será mais fácil estarmos atentos aos disfarces dos tempos modernos que podem emergir nas derivas antidemocráticas e ser sensível à ideia de que a liberdade e a libertação constituem tarefas que nunca acabam nas sociedades democráticas.

Como transmitir e fazer compreender esta ideia central aos que por serem demasiado jovens e por lerem pouco ou nada não têm qualquer memória do que alguns pretendem recuperar?

 

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