domingo, 31 de março de 2024

A VIA-SACRA DO CAMINHO PARA A PAZ

 

                                                                    (Voz de Galicia)

(Confesso que não sou decididamente um adepto, fervoroso ou sequer moderado, das cerimónias da Semana Santa. Sempre me assustou o caráter fúnebre e pesado de algumas das suas principais manifestações, seja nas fustigações impiedosas das Filipinas, no negro carregado dos eventos em Espanha e mesmo no que me dizem, pois nunca assisti in loco, às cerimónias de Braga. Não sendo católico praticante, imagino que não seja pelo negro pesado que a Igreja possa recuperar decisivamente praticantes, mas isso é questão que as autoridades religiosas devem abordar, embora a Semana Santa comece a apresentar laivos claros de oferta turística e essa, creio eu, tenderá a apostar no realismo quanto mais lúgubre possível para entreter a multidão. Mas hoje Seixas acordou com esperanças de sol, as nuvens não são negras, mas uma massa imensa de nuvens brancas envolve Santa Tecla, embora sem ocultar o pico do monte e daí que me apeteça dissertar sobre as dificuldades da paz pascal, pensando sobretudo no drama da resistência, e do seu reverso a opressão, em Gaza e na Ucrânia mais martirizada e em todos os lugares em que as pessoas normais são privadas da liberdade. É a isso a que alude o cartoon dos autores galegos Pinto e Chinto).

Estamos hoje naquele limbo estranho que a história frequentemente nos traz, no qual temos a perceção de que vai ser necessário pensar na guerra, pelo menos prepará-la com organização e recursos para isso, para podermos imaginar as hipóteses, ainda que mais remotas, de paz.

Este limbo estende o seu manto por todas as sociedades democráticas e por aquelas em que minorias ou maiorias procuram combater o autoritarismo. É um facto e basta ler os jornais e ver televisão para o compreender. Mas não há dúvida que é na Europa que a questão é mais aguda, até porque as memórias pelo menos da Segunda Guerra Mundial não estão ainda totalmente esquecidas, há ainda e sempre avós ou conterrâneos que o conseguem lembrar.

A Comissária Elisa Ferreira, tal como o meu colega de blogue justamente o lembrou, veio desassombradamente a terreiro afirmar com pertinência que a reforma mais importante que a Europa enfrenta é a das mentalidades, pois só ela tenderá a potenciar decisivamente as outras Reformas para as quais a Comissão Europeia, como por exemplo a da transição verde, a transformação digital e a adaptação das qualificações e modelos de organização que essas grandes transformações implicam. Não podia estar mais de acordo. A população europeia, cada vez mais envelhecida e distraída da necessidade de proporcionar objetivos às gerações mais novas, convenceu-se que o modelo de Estado Social europeu eram favas contadas, que estava adquirido assim como a irmã mais velha da democracia. É verdade que os Escandinavos têm conseguido conjugar essa realidade com a da inovação, mas mesmo nesse campo de exceção o modelo de Estado Social tem experimentado alterações, por vezes subtis, que nos deveriam ter alertado para que nada estava garantido. E sobretudo esse Estado Social tem evidenciado dificuldades para se ajustar ao agravamento da desigualdade, estando por isso perante o dilema da universalidade ou da necessidade de apostar pelos mais desfavorecidos, que não é ideologicamente uma opção fácil, já que a universalidade pertence ao mundo dos “basics”.

Com esse manto de desigualdade instalado e a começar a penetrar o universo das crenças políticas, transformações como a transição verde e a transição digital adquirem uma maior complexidade, já que os ricos de esquecermos os “left behind” são cada vez mais acentuados.

O Our World of Data cita um estudo de 2024 no âmbito do qual se perguntou aos inquiridos se estariam dispostos a ceder 1% do seu rendimento para financiar a transição climática. Numa amostra de 125 países, a resposta foi que 69% disse que sim, mas perguntados que percentagem de outras pessoas no seu país daria a mesma resposta, a percentagem obtida foi de 43%. Estaremos, assim, provavelmente, a subestimar a percentagem de pessoas que estará disposta a financiar a transição verde, mas não sabemos que diferenciação tem a Europa nesta matéria e em que medida a desigualdade existente pode estar a condicionar a recetividade à mesma.

Tal como o Economist o afirmou com clareza esta semana, a Europa encontra-se numa posição claramente mais desfavorável, enfrentando três choques possíveis, alguns dos quais já revelados no horizonte: o da Rússia, com reflexos mais sérios nos países mais próximos do conflito Ucraniano, o da China, sobretudo depois de um longo período de cumplicidade interesseira com o modelo de expansão económica chinês e o dos EUA se Trump conseguir o atentado democrático que se antevê poder acontecer. As evidências desse choque não devidamente acomodado está por exemplo ilustrado na matéria da mobilidade elétrica em que a estratégia chinesa de subsidiação da produção de veículos elétricos se tem revelado incomparavelmente mais eficaz do que a da subsidiação do consumo que as autoridades europeias escolheram. A evolução no mercado europeu de marcas chinesas como a da BYD é do que estou a dizer uma inapelável ilustração.

Os Europeus não terão ainda intuído com clareza o que o reforço da Defesa (batismo de fogo para a leveza do ministro Melo) irá implicar em termos de sombras orçamentais sobre o modelo de Estado Social e também de alteração de comportamentos, por exemplo os efeitos de uma eventual imposição do ensino militar obrigatório para os jovens destes países (jovens masculinos ou também mulheres?).

Por isso, a Comissária Elisa Ferreira bateu no ponto certo quando alertou para a verdadeira reforma das mentalidades e comportamentos. Porque a banalização no jargão comunitário das palavras “transição verde” ou “transição digital” equivale a confundir mudança e transformação com um sedativo que nos devolve a tranquilidade. Por isso tendo a preferir a palavra revolução. Assusta mais e evita os conceitos “fofinhos”.

O caminho para a paz será tudo menos “fofinho”.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário