quarta-feira, 30 de maio de 2018

A ALEMANHA DE MERKEL



(Enquanto Frau Merkel visita o Norte, os investimentos alemães (o Centro da Bosch é uma grande conquista) e se passeia pela Ribeira de Gaia, tempo para refletir um pouco sobre as evoluções mais recentes do modelo alemão. Afinal, a estabilidade europeia face às derivas que por aí pululam dependerá muito, embora não exclusivamente, da robustez desse modelo e do posicionamento das suas lideranças)

Há dias a extrema-direita alemã quis mostrar as suas garras. Não são para ignorar, mas penso que haverá condições políticas e sociais no país de Merkel para barrar o caminho a essa tentação de expressividade. É difícil classificar a extrema-direita alemã de manifestação de populismo, alinhando-o, por exemplo, com o crescendo da Liga em Itália, a qual teve de mão beijada umas novas eleições no horizonte que se arriscam a ser plebiscitárias do peso dos italianos do Norte no sistema político italiano. Inclino-me mais para interpretar a emergência da extrema-direita alemã como resquícios não eliminados de xenofobia alemã, que tiveram na abertura do território alemão a uma massa enorme de refugiados o pretexto para reavivar velhas taras supremacistas, xenófobas e fascizantes. Do ponto de vista económico, não se identificam no desempenho da economia alemã razões para o populismo alastrar e o próprio estilo de governação de Merkel é o seu contrário.

Mas vale a pena refletir sobre a robustez do desempenho económico alemão. E aqui, ao contrário do senso comum que associa à Alemanha uma continuidade de elevado desempenho, convém não esquecer que, em meados da década de 2000, a Alemanha era considerada, senão uma economia doente, pelo menos um paciente a suscitar monitorização apertada e diligente.

Esquecemo-nos do esforço brutal que a reunificação da Alemanha após a queda do muro de Berlim representou em termos de alocação de recursos públicos (não esquecendo o contributo da União Europeia) e de ensaio de convergência estrutural algo que não se repete frequentemente na história. Economistas que citarei mais adiante, estimam que, entre 1991 e 2003, as transferências líquidas para a Alemanha de Leste equivaleram a cerca de metade do PIB médio anual alemão nesse período.

Mas a verdade é que depois dessa perturbação, a economia alemã evoluiu para um desempenho à altura do seu estatuto de quarta economia mundial e de motor da economia europeia, com os seus investimentos diretos externos a serem disputados por todo o lado e particularmente na União Europeia.

O facto do desempenho económico alemão ser contemporâneo do aumento desmedido dos seus excedentes comerciais externos e do próprio orçamento de Estado, em clara oposição com o mecanismo que a zona Euro necessitaria para evitar que a desvalorização interna dos países deficitários tivesse que ser tão pronunciada, tem ofuscado a avaliação séria desse desempenho imparável. Refletindo sobre a economia alemã na sequência da vinda de Merkel, recordei-me de um artigo, não muito longínquo, que me atraíra em devido tempo a minha atenção. Foi um artigo publicado por um coletivo de quatro economistas no Journal of Economic Perspectives (JEP) do inverno de 2014, uma das minhas revistas americanas preferidas e uma das mais prestigiadas. O artigo chamava-se “From Sick Man of Europe of Europe to Economic Superstar: Germany’s Resurgent Economy” e foi também revisitado por Tim Taylor no Conversable Economist (link aqui) que acompanho regularmente. Curiosamente, os mesmos quatro economistas, repartidos por funções universitárias em Londres e na Alemanha, estão presentes numa excelente coletânea publicada este mês em E-book pelo VOX EU: Dalia Marin (editora), “Explaining Germany’s Exceptional Recovery”, 2018 (link aqui).

O que me surpreendeu no artigo do JEP foi o propósito de explicar o ressurgimento alemão pós reunificação a partir do fator determinante da organização do seu mercado de trabalho, apresentado como um manancial de flexibilidade adaptativa às novas condições da competitividade na economia global. Esta tese é sugestiva mas penso que será indissociável do posicionamento alemão no sistema do euro, em que o país goza de uma posição predominante e dominadora.

Vale a pena estudar com pormenor a flexibilidade do mercado alemão, conseguida essencialmente através de uma marcada descentralização das relações industriais, a barganha no mercado de trabalho. Os conselhos de trabalhadores ao nível da empresa desempenham um papel crucial na flexibilidade do mercado de trabalho, mas isso pressupõe um mercado de trabalho em que a legislação nacional não tem o peso por exemplo que apresenta na economia portuguesa. A descentralização das relações industriais no mercado alemão desenvolve-se através de uma descida assinalável da percentagem de trabalhadores sindicalizados e pelo aumento de situações de exceção nas convenções coletivas (as chamadas opening clauses) que abriu caminho a uma barganha salarial essencialmente determinada ao nível da empresa. Veja-se a tentativa da Auto Europa trazer para Portugal esse modelo. Não sem surpresa, a descentralização e flexibilização do mercado de trabalho alemão tem associado um significativo aumento de desigualdade Não é preciso ser um barra em economia para compreender que, com esse contexto de determinação salarial e o potencial de produtividade que tem a indústria alemã, a descentralização da barganha no mercado de trabalho trouxe competitividade saliente à economia alemã.

 (Gráfico apresentado pelo Professor Gerhard Bosch na Conferência de Paris da ILO e Comissão Europeia, Industrial Relations in Europe, na qual a minha colega Pilar González apresentou o nosso artigo conjunto, 17 e 18 de maio de 2018)

É verdade que pode dizer-se que o Euro só veio depois uns anos depois deste modelo estar em ação. Mas no novo quadro sistémico do euro, com variações salariais inferiores ao comportamento da produtividade, a Alemanha impõe aos seus parceiros de euro uma desvalorização interna inevitável. O investimento direto alemão, se corresponder a um modelo indutor de inovação, como o da AutoEuropa ou da Bosch, compensa essa penalidade imposta pelos alemães.

Ou seja, no quadro presente, a descentralização e flexibilidade do mercado de trabalho alemão tem os seus efeitos sobre a competitividade indissociáveis das relações no interior do sistema do Euro. Por isso, não pode ser visto como um fator que dispense os alemães de um comportamento compatível com uma zona Euro que não promova o desenvolvimento desigual.

Desta vez a senhora Merkel não teve contestação na sua visita. Mas conviria não esquecer os efeitos da tal descentralização e flexibilidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário