(Enquanto Frau Merkel visita o Norte, os investimentos alemães
(o Centro da Bosch é uma grande conquista) e se passeia pela Ribeira de Gaia, tempo
para refletir um pouco sobre as evoluções mais recentes do modelo alemão. Afinal,
a estabilidade europeia face às derivas que por aí pululam dependerá muito, embora
não exclusivamente, da robustez desse modelo e do posicionamento das suas lideranças)
Há dias a
extrema-direita alemã quis mostrar as suas garras. Não são para ignorar, mas
penso que haverá condições políticas e sociais no país de Merkel para barrar o
caminho a essa tentação de expressividade. É difícil classificar a extrema-direita
alemã de manifestação de populismo, alinhando-o, por exemplo, com o crescendo
da Liga em Itália, a qual teve de mão beijada umas novas eleições no horizonte
que se arriscam a ser plebiscitárias do peso dos italianos do Norte no sistema
político italiano. Inclino-me mais para interpretar a emergência da
extrema-direita alemã como resquícios não eliminados de xenofobia alemã, que tiveram
na abertura do território alemão a uma massa enorme de refugiados o pretexto
para reavivar velhas taras supremacistas, xenófobas e fascizantes. Do ponto de
vista económico, não se identificam no desempenho da economia alemã razões para
o populismo alastrar e o próprio estilo de governação de Merkel é o seu contrário.
Mas vale a
pena refletir sobre a robustez do desempenho económico alemão. E aqui, ao contrário
do senso comum que associa à Alemanha uma continuidade de elevado desempenho,
convém não esquecer que, em meados da década de 2000, a Alemanha era
considerada, senão uma economia doente, pelo menos um paciente a suscitar
monitorização apertada e diligente.
Esquecemo-nos
do esforço brutal que a reunificação da Alemanha após a queda do muro de Berlim
representou em termos de alocação de recursos públicos (não esquecendo o
contributo da União Europeia) e de ensaio de convergência estrutural algo que não
se repete frequentemente na história. Economistas que citarei mais adiante, estimam
que, entre 1991 e 2003, as transferências líquidas para a Alemanha de Leste
equivaleram a cerca de metade do PIB médio anual alemão nesse período.
Mas a verdade
é que depois dessa perturbação, a economia alemã evoluiu para um desempenho à
altura do seu estatuto de quarta economia mundial e de motor da economia
europeia, com os seus investimentos diretos externos a serem disputados por
todo o lado e particularmente na União Europeia.
O facto do
desempenho económico alemão ser contemporâneo do aumento desmedido dos seus excedentes
comerciais externos e do próprio orçamento de Estado, em clara oposição com o
mecanismo que a zona Euro necessitaria para evitar que a desvalorização interna
dos países deficitários tivesse que ser tão pronunciada, tem ofuscado a avaliação
séria desse desempenho imparável. Refletindo sobre a economia alemã na sequência
da vinda de Merkel, recordei-me de um artigo, não muito longínquo, que me atraíra
em devido tempo a minha atenção. Foi um artigo publicado por um coletivo de quatro
economistas no Journal of Economic Perspectives
(JEP) do inverno de 2014, uma das minhas revistas americanas preferidas e uma
das mais prestigiadas. O artigo chamava-se “From Sick
Man of Europe of Europe to Economic Superstar: Germany’s Resurgent Economy”
e foi também revisitado por Tim Taylor no Conversable Economist (link aqui) que acompanho
regularmente. Curiosamente, os mesmos quatro economistas, repartidos por funções
universitárias em Londres e na Alemanha, estão presentes numa excelente coletânea
publicada este mês em E-book pelo VOX EU: Dalia Marin (editora), “Explaining Germany’s Exceptional Recovery”,
2018 (link aqui).
O que me
surpreendeu no artigo do JEP foi o propósito de explicar o ressurgimento alemão
pós reunificação a partir do fator determinante da organização do seu mercado
de trabalho, apresentado como um manancial de flexibilidade adaptativa às novas
condições da competitividade na economia global. Esta tese é sugestiva mas
penso que será indissociável do posicionamento alemão no sistema do euro, em
que o país goza de uma posição predominante e dominadora.
Vale a pena
estudar com pormenor a flexibilidade do mercado alemão, conseguida essencialmente
através de uma marcada descentralização das relações industriais, a barganha no
mercado de trabalho. Os conselhos de trabalhadores ao nível da empresa desempenham
um papel crucial na flexibilidade do mercado de trabalho, mas isso pressupõe um
mercado de trabalho em que a legislação nacional não tem o peso por exemplo que
apresenta na economia portuguesa. A descentralização das relações industriais
no mercado alemão desenvolve-se através de uma descida assinalável da percentagem
de trabalhadores sindicalizados e pelo aumento de situações de exceção nas
convenções coletivas (as chamadas opening clauses)
que abriu caminho a uma barganha salarial essencialmente determinada ao nível
da empresa. Veja-se a tentativa da Auto Europa trazer para Portugal esse
modelo. Não sem surpresa, a descentralização e flexibilização do mercado de
trabalho alemão tem associado um significativo aumento de desigualdade Não é preciso
ser um barra em economia para compreender que, com esse contexto de determinação
salarial e o potencial de produtividade que tem a indústria alemã, a
descentralização da barganha no mercado de trabalho trouxe competitividade saliente
à economia alemã.
(Gráfico apresentado pelo Professor Gerhard Bosch na Conferência de Paris da ILO e Comissão Europeia, Industrial Relations in Europe, na qual a minha colega Pilar González apresentou o nosso artigo conjunto, 17 e 18 de maio de 2018)
É verdade
que pode dizer-se que o Euro só veio depois uns anos depois deste modelo estar
em ação. Mas no novo quadro sistémico do euro, com variações salariais inferiores
ao comportamento da produtividade, a Alemanha impõe aos seus parceiros de euro
uma desvalorização interna inevitável. O investimento direto alemão, se
corresponder a um modelo indutor de inovação, como o da AutoEuropa ou da Bosch,
compensa essa penalidade imposta pelos alemães.
Ou seja, no
quadro presente, a descentralização e flexibilidade do mercado de trabalho alemão
tem os seus efeitos sobre a competitividade indissociáveis das relações no
interior do sistema do Euro. Por isso, não pode ser visto como um fator que
dispense os alemães de um comportamento compatível com uma zona Euro que não
promova o desenvolvimento desigual.
Desta vez a
senhora Merkel não teve contestação na sua visita. Mas conviria não esquecer os
efeitos da tal descentralização e flexibilidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário