(Seja pela proximidade do Congresso, seja apenas pela
simples circunstância da aceleração do tempo político, o PS parece finalmente
mexer-se. E não estou a falar apenas dos assuntos Sócrates, Pinho e
estruturas conexas.)
Renato
Sampaio, num dos seus últimos posts no Facebook, publicou uma mensagem
arrebatada de fiel amizade ao seu amigo José Sócrates, proclamando que não
renega amizades e não deixa cair amigos de longa data. Está no seu direito e
longe de mim ter o topete de o criticar por isso. As relações de amizade são
domínio exclusivo dos envolvidos e ninguém pode do exterior discutir a
perenidade desses laços, quaisquer que sejam os ventos que os mesmos são
forçados a enfrentar. Mas o problema não é esse. Deixemos a justiça formular e
fundamentar a acusação e esperemos que Sócrates e os seus advogados preparem
uma defesa consistente. Não é isso que está em causa, por mais desconfianças
que tenhamos (é o meu caso) quanto à argumentação pública do ex-primeiro
Ministro e à consistência de algumas vertentes da acusação, pelo menos desde
que os primeiros casos começaram a ser passados para o domínio público. O PS,
embora mantendo a máxima de Costa de “à política o que é da política e à
justiça o que é da justiça”, deveria em tempo oportuno ter realizado a sua
autocrítica sobre o período de governação conduzido por José Sócrates,
afirmando consistentemente o que considera ser um legado digno da memória do PS
e oque representa um legado mais duvidoso, indigno de ser repetido num próximo
exercício de governação. E até o poderia fazer com superioridade moral, pelo
menos em relação a um conjunto de “emplastros” da nossa política que então não
regateavam pedir batatinhas a quem admiravam pelo seu poder de decisão e que
hoje engrossam o coro da proclamação das indignidade associáveis ao modelo
Sócrates. E até haveria matéria para isso, designadamente em termos do modelo
económico que gravitava na cabeça do ex-primeiro-Ministro.
Não o fez,
talvez Seguro o viesse a fazer dada a sua maior distância face a Sócrates mas
talvez nunca venhamos a sabê-lo , e com isso ficou preso a uma dinâmica de
acontecimentos que não controla, emparedado entre a lentidão da justiça e as
fugas de informação criteriosamente vertidas para a opinião pública na mais
enxovalhada falta de respeito pelo segredo de justiça.
O “affair”
Manuel Pinho, se por Sócrates não poria as mãos no fogo por Pinho muito menos,
veio acelerar as coisas. Pinho, um deslumbrado pelas maravilhas do “choque
tecnológico” terá escolhido defender as suas vulnerabilidades face à justiça,
desdenhando aparentemente da sua defesa política. Com tal comportamento e dada
a sua proximidade de pensamento face a Sócrates, colocou o PS em sérias
dificuldades, não podendo deixar de sair da toca. Bem pregava Jorge Coelho há
alguns anos quando murmurava “ai estes independentes!”. Ana Gomes cheira
rastilho que nem perdigueiro cheira caça, Alegre pela-se por acertos da
história, César não perde pitada para se afirmar como patriarca impoluto e
Galamba não quer ficar atrás do pensamento bloquista. Podemos classificar tudo
isto como “o PS mexe-se finalmente?”. Em parte sim, mas não é isso que
verdadeiramente me interessa.
O que é para
mim relevante é saber se o PS tem os neurónios em movimento, porque a capacidade
de pensar só se mede pensando. Este plano é bem mais interessante do que o
outro, porque ao acosso que caracteriza a reação face a Sócrates e a Pinho
contrapõe-se a autonomia de pensar o futuro, com Sócrates e Pinho condenados ou
não.
O artigo de
Pedro Nuno Santos (PNS) no Público de hoje é uma das raras provas de vida do PS
como instituição pensante. Acho que pela primeira vez no partido alguém tem a
coragem de tentar explicar por que razão o PS não partilha o declínio dos
partidos sociais-democratas e socialistas democráticos. Tanto mais importante
quanto o faz a partir da valoração da experiência do acordo parlamentar à
esquerda e de uma crítica demolidora da “terceira via”. Não vejo ninguém mais
próximo das ilusões da terceira via do que o próprio José Sócrates e por isso o
testemunho de PNS é ainda mais importante. O ministro para os Assuntos
Parlamentares explicita as razões pelas quais os partidos socialistas perderam
os laços de confiança e de identificação com os mais pobres e com os deserdados
da distribuição dos frutos do tão propagado crescimento económico, vidrados nas
classes médias que o choque tecnológico deveria promover. Mas a história da
globalização e do progresso tecnológico, combinados, traíram o foco nessas
classes médias (argumento meu e não de PNS). A polarização dos empregos e dos
salários tramou as médias qualificações e embora não haja uma correspondência
rigorosa entre classes médias e qualificações intermédias o choque bateu forte.
A crise financeira de 2007-2008 agudizou esse problema e os partidos
socialistas não se distanciaram (porque não podiam) suficientemente da
financeirização. Perderam pau e bola, os deserdados e mais pobres e também as
classes médias. Este argumento tem aplicação não pacífica em Portugal.
Primeiro, a demonstração empírica da polarização não está totalmente
conseguida, principalmente quando se desagregam um pouco as ocupações e as
profissões. Segundo, ao contrário do observado noutros países, as classes
médias em Portugal, representadas imperfeitamente pelos grupos intermédios de
rendimento, não foram as que viram o seu rendimento mais penalizado. De
qualquer modo, ao não dar voz aos deserdados e marginalizados da distribuição
do rendimento e ao apostar no potencial de transformação das classes médias, penalizadas
pela polarização, os partidos socialistas estão hoje na maioria dos países
europeus circunscritos a uma elite urbana, beneficiada pelo “skill bias” e com reflexos na
distribuição do rendimento. Piketty chama-lhe curiosamente “The
Brahmin Left” (“Brahmin Left versus
Merchant Right: Rising Inequality and the Changing Structure of Political
Conflict – Evidence from the United Kingdom, France and United States 1945-2017”-
World Inequality Lab, março de 2018). A esquerda Brahmin é
meritocrática e pouco sensível aos problemas dos deserdados e sem Voz na
distribuição.
Trazendo
parte desta realidade argumentária para Portugal, PNS procura demonstrar que a
inovação da geringonça permitiu que o PS ficasse imune a tais tentações.
Citando:
“Em vez de esperar que os mercados destruam e criem,
limitando-se a política social a apanhar os “cacos” gerados pela destruição
criativa, o Estado necessita de melhor intervir previamente nos mercados,
desenhando-os segundo critérios de justiça e eficácia. Trata-se, nuns casos, de
limitar os mercados, como nos serviços públicos universais de educação e saúde
(forçando o capital privado a investir em setores transacionáveis); trata-se,
noutros, de limitar a ação dos mercados (no trabalho, na habitação, na energia,
no ambiente) através de regulação inteligente; trata-se, noutros casos ainda,
de construir mercados através de políticas de inovação onde o Estado deve ser
capaz de definir missões coletivas, coordenando a atividade dos privados na
resolução de problemas económicos, ambientais e sociais.”
Eis uma boa
matéria para debate. Mas a solução ainda não foi testada na fase descendente do
ciclo. Será que a geringonça funcionará tão oleada quando deixarmos de estar em
expansão? Serão as escolhas públicas tão fluidas como o têm sido apesar dos
arrufos? A interrogação não significa de todo reconhecimento a priori da impossibilidade. Para além
de todas as coisas, o acordo parlamentar à esquerda mostrou que o universo do
possível na política nacional foi alargado. E estamos hoje mais ricos em termos
de referenciais do que estávamos há dois anos. Assim se constroem as margens de
transformação possível.
A pensar é
que a gente se entende.
A afirmação de a esquerda Brahmin ser meritocrática e pouco sensível aos problemas dos deserdados e sem Voz na distribuição fez-me lembrar de um texto de Michael Sandel que me parece interessante para pensar estas coisas (https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/jan/01/themes-of-2016-progressive-parties-address-peoples-anger-in-2017).
ResponderEliminar