sexta-feira, 4 de maio de 2018

O PS MEXE, FINALMENTE …



(Seja pela proximidade do Congresso, seja apenas pela simples circunstância da aceleração do tempo político, o PS parece finalmente mexer-se. E não estou a falar apenas dos assuntos Sócrates, Pinho e estruturas conexas.)

Renato Sampaio, num dos seus últimos posts no Facebook, publicou uma mensagem arrebatada de fiel amizade ao seu amigo José Sócrates, proclamando que não renega amizades e não deixa cair amigos de longa data. Está no seu direito e longe de mim ter o topete de o criticar por isso. As relações de amizade são domínio exclusivo dos envolvidos e ninguém pode do exterior discutir a perenidade desses laços, quaisquer que sejam os ventos que os mesmos são forçados a enfrentar. Mas o problema não é esse. Deixemos a justiça formular e fundamentar a acusação e esperemos que Sócrates e os seus advogados preparem uma defesa consistente. Não é isso que está em causa, por mais desconfianças que tenhamos (é o meu caso) quanto à argumentação pública do ex-primeiro Ministro e à consistência de algumas vertentes da acusação, pelo menos desde que os primeiros casos começaram a ser passados para o domínio público. O PS, embora mantendo a máxima de Costa de “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça”, deveria em tempo oportuno ter realizado a sua autocrítica sobre o período de governação conduzido por José Sócrates, afirmando consistentemente o que considera ser um legado digno da memória do PS e oque representa um legado mais duvidoso, indigno de ser repetido num próximo exercício de governação. E até o poderia fazer com superioridade moral, pelo menos em relação a um conjunto de “emplastros” da nossa política que então não regateavam pedir batatinhas a quem admiravam pelo seu poder de decisão e que hoje engrossam o coro da proclamação das indignidade associáveis ao modelo Sócrates. E até haveria matéria para isso, designadamente em termos do modelo económico que gravitava na cabeça do ex-primeiro-Ministro.

Não o fez, talvez Seguro o viesse a fazer dada a sua maior distância face a Sócrates mas talvez nunca venhamos a sabê-lo , e com isso ficou preso a uma dinâmica de acontecimentos que não controla, emparedado entre a lentidão da justiça e as fugas de informação criteriosamente vertidas para a opinião pública na mais enxovalhada falta de respeito pelo segredo de justiça.

O “affair” Manuel Pinho, se por Sócrates não poria as mãos no fogo por Pinho muito menos, veio acelerar as coisas. Pinho, um deslumbrado pelas maravilhas do “choque tecnológico” terá escolhido defender as suas vulnerabilidades face à justiça, desdenhando aparentemente da sua defesa política. Com tal comportamento e dada a sua proximidade de pensamento face a Sócrates, colocou o PS em sérias dificuldades, não podendo deixar de sair da toca. Bem pregava Jorge Coelho há alguns anos quando murmurava “ai estes independentes!”. Ana Gomes cheira rastilho que nem perdigueiro cheira caça, Alegre pela-se por acertos da história, César não perde pitada para se afirmar como patriarca impoluto e Galamba não quer ficar atrás do pensamento bloquista. Podemos classificar tudo isto como “o PS mexe-se finalmente?”. Em parte sim, mas não é isso que verdadeiramente me interessa.

O que é para mim relevante é saber se o PS tem os neurónios em movimento, porque a capacidade de pensar só se mede pensando. Este plano é bem mais interessante do que o outro, porque ao acosso que caracteriza a reação face a Sócrates e a Pinho contrapõe-se a autonomia de pensar o futuro, com Sócrates e Pinho condenados ou não.

O artigo de Pedro Nuno Santos (PNS) no Público de hoje é uma das raras provas de vida do PS como instituição pensante. Acho que pela primeira vez no partido alguém tem a coragem de tentar explicar por que razão o PS não partilha o declínio dos partidos sociais-democratas e socialistas democráticos. Tanto mais importante quanto o faz a partir da valoração da experiência do acordo parlamentar à esquerda e de uma crítica demolidora da “terceira via”. Não vejo ninguém mais próximo das ilusões da terceira via do que o próprio José Sócrates e por isso o testemunho de PNS é ainda mais importante. O ministro para os Assuntos Parlamentares explicita as razões pelas quais os partidos socialistas perderam os laços de confiança e de identificação com os mais pobres e com os deserdados da distribuição dos frutos do tão propagado crescimento económico, vidrados nas classes médias que o choque tecnológico deveria promover. Mas a história da globalização e do progresso tecnológico, combinados, traíram o foco nessas classes médias (argumento meu e não de PNS). A polarização dos empregos e dos salários tramou as médias qualificações e embora não haja uma correspondência rigorosa entre classes médias e qualificações intermédias o choque bateu forte. A crise financeira de 2007-2008 agudizou esse problema e os partidos socialistas não se distanciaram (porque não podiam) suficientemente da financeirização. Perderam pau e bola, os deserdados e mais pobres e também as classes médias. Este argumento tem aplicação não pacífica em Portugal. Primeiro, a demonstração empírica da polarização não está totalmente conseguida, principalmente quando se desagregam um pouco as ocupações e as profissões. Segundo, ao contrário do observado noutros países, as classes médias em Portugal, representadas imperfeitamente pelos grupos intermédios de rendimento, não foram as que viram o seu rendimento mais penalizado. De qualquer modo, ao não dar voz aos deserdados e marginalizados da distribuição do rendimento e ao apostar no potencial de transformação das classes médias, penalizadas pela polarização, os partidos socialistas estão hoje na maioria dos países europeus circunscritos a uma elite urbana, beneficiada pelo “skill bias” e com reflexos na distribuição do rendimento. Piketty chama-lhe curiosamente “The Brahmin Left” (“Brahmin Left versus Merchant Right: Rising Inequality and the Changing Structure of Political Conflict – Evidence from the United Kingdom, France and United States 1945-2017”- World Inequality Lab, março de 2018). A esquerda Brahmin é meritocrática e pouco sensível aos problemas dos deserdados e sem Voz na distribuição.

Trazendo parte desta realidade argumentária para Portugal, PNS procura demonstrar que a inovação da geringonça permitiu que o PS ficasse imune a tais tentações.

Citando:

Em vez de esperar que os mercados destruam e criem, limitando-se a política social a apanhar os “cacos” gerados pela destruição criativa, o Estado necessita de melhor intervir previamente nos mercados, desenhando-os segundo critérios de justiça e eficácia. Trata-se, nuns casos, de limitar os mercados, como nos serviços públicos universais de educação e saúde (forçando o capital privado a investir em setores transacionáveis); trata-se, noutros, de limitar a ação dos mercados (no trabalho, na habitação, na energia, no ambiente) através de regulação inteligente; trata-se, noutros casos ainda, de construir mercados através de políticas de inovação onde o Estado deve ser capaz de definir missões coletivas, coordenando a atividade dos privados na resolução de problemas económicos, ambientais e sociais.”

Eis uma boa matéria para debate. Mas a solução ainda não foi testada na fase descendente do ciclo. Será que a geringonça funcionará tão oleada quando deixarmos de estar em expansão? Serão as escolhas públicas tão fluidas como o têm sido apesar dos arrufos? A interrogação não significa de todo reconhecimento a priori da impossibilidade. Para além de todas as coisas, o acordo parlamentar à esquerda mostrou que o universo do possível na política nacional foi alargado. E estamos hoje mais ricos em termos de referenciais do que estávamos há dois anos. Assim se constroem as margens de transformação possível.

A pensar é que a gente se entende.

1 comentário:

  1. A afirmação de a esquerda Brahmin ser meritocrática e pouco sensível aos problemas dos deserdados e sem Voz na distribuição fez-me lembrar de um texto de Michael Sandel que me parece interessante para pensar estas coisas (https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/jan/01/themes-of-2016-progressive-parties-address-peoples-anger-in-2017).

    ResponderEliminar