(Uma excelente peça de Francisco Louçã sobre o maio de 68,
sobretudo na perspetiva de confluência de causalidades, transnacionais, do cinema
à rua, passando pela Universidade e pelo mundo do trabalho. Mais
enraizada ficou a minha ideia de que o maio de 68 representou sobretudo uma
rotura com o estabelecido, mais do que uma revolução política.)
Para mim sempre
houve dois Franciscos Louçã, o da economia e do pensamento sobre a sociedade e
o político, fundador do Bloco de Esquerda. Sei que o próprio renega frontalmente
esta separação artificial, que se esforça por demonstrar que o segundo é consequência
do primeiro, mas Louçã que me desculpe, não vou por aí. “De
Cannes a Paris, os dias que sacudiram o mundo” é uma peça que
considero notável, sobre a compreensão em contexto globalizado dos
acontecimentos de Nanterre e Paris. É muito curioso e sintomático que Louçã
parta dos 72 anos do Festival de Cannes em 1968 para aí situar os acontecimentos
de Paris, incluindo a profunda revolução que atravessou o Festival nesse ano, liderada
por personalidades como Truffaut, Goddard, Claude Berri, Lelouch, Louis Malle. Ele
pretende mostrar que os reflexos do maio de 68 no cinema eram a ilustração de uma
rotura contra o estabelecido, com a não coincidência histórica de no dia 10 de maio
se realizar na Avenida Kléber também em Paris o encontro de duas delegações norte-vietnamita
e norte-americana para iniciar o difícil e complexo negocial que cristalizaria
a derrota americana no Vietname. As escaras da guerra do Vietname, as sequelas da
guerra da Argélia em França, o ressurgimento cultural e da contestação política
de Berlim nas barbas da guerra fria, a reação ao afastamento de Henri Langlois da
Cinemateca francesa, a difícil convivência de De Gaulle e Malraux com o mexer
das coisas, a crise estudantil italiana de 1967, o assassinato de Martin Luther
King em abril de 1968, as revoluções latino-americanas, a cultura do comunismo
da força no centro e leste europeu, enfim um cadinho de roturas e incomodidades,
os valores do capitalismo a serem questionados em permanência.
Em suma, lapidarmente
resumido por Louçã: “Foi precisamente
essa combinação, em vários países, entre a radicalização antiguerra, a cultura
crítica da universidade e a rejeição do quotidiano da rotina e da hierarquia que
fez nascer Maio de 68” ou ainda “Os
exemplos e os estímulos demonstravam que o mundo estava a girar. Mas é possível
que tenham sido os fatores culturais mais profundos, o desgaste do produtivismo
e do sonho tecnológico, o conflito geracional com a hierarquia social e as
normas morais conservadoras a criarem o terramoto que se revela em maio. A juventude
é o centro dessas preocupações …”
Estou ainda
com Louçã quando ele situa o que ficou de toda esta rotura: “se há uma herança de Maio, que é a dos movimentos sociais
que então se expressaram, é a luta contra o sexismo, ou contra o racismo, ou pelos
direitos civis, ou pelo ensino publico, ou pelos direitos dos trabalhadores na
empresa, que definiram o mínimo de que parte a vida democrática”.
Pode então
perguntar-se em que medida estando os jovens, motor da transformação de então, numa
situação de fortíssima penalização social, não se assiste de novo a uma
profunda radicalização contra este estado de coisas? A resposta não é fácil,
mas convém não ignorar que a revolução dos costumes e da vida urbana está feita,
mas que a desigualdade é profunda e cada vez mais cavada. O capitalismo não é o
mesmo, pois a sua crise de valores, na base dos quais, a defesa e transferência
desejável do modelo eram concebidas, é demasiado ampla, não gerando qualquer
efeito demonstração. Do outro lado, os sem Voz e representação política são
presa fácil dos populismos. Não se antevê que convergência de movimentos
facilitadores nos possa conduzir a uma nova rotura clarificadora. Por isso, o
Maio de 68 não é tão longínquo como isso.
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