segunda-feira, 7 de maio de 2018

O MAIO DE 68 SEGUNDO LOUÇÃ

(FOTO Reg Lancaster/Express/Getty Images)

(Uma excelente peça de Francisco Louçã sobre o maio de 68, sobretudo na perspetiva de confluência de causalidades, transnacionais, do cinema à rua, passando pela Universidade e pelo mundo do trabalho. Mais enraizada ficou a minha ideia de que o maio de 68 representou sobretudo uma rotura com o estabelecido, mais do que uma revolução política.)

Para mim sempre houve dois Franciscos Louçã, o da economia e do pensamento sobre a sociedade e o político, fundador do Bloco de Esquerda. Sei que o próprio renega frontalmente esta separação artificial, que se esforça por demonstrar que o segundo é consequência do primeiro, mas Louçã que me desculpe, não vou por aí. “De Cannes a Paris, os dias que sacudiram o mundo” é uma peça que considero notável, sobre a compreensão em contexto globalizado dos acontecimentos de Nanterre e Paris. É muito curioso e sintomático que Louçã parta dos 72 anos do Festival de Cannes em 1968 para aí situar os acontecimentos de Paris, incluindo a profunda revolução que atravessou o Festival nesse ano, liderada por personalidades como Truffaut, Goddard, Claude Berri, Lelouch, Louis Malle. Ele pretende mostrar que os reflexos do maio de 68 no cinema eram a ilustração de uma rotura contra o estabelecido, com a não coincidência histórica de no dia 10 de maio se realizar na Avenida Kléber também em Paris o encontro de duas delegações norte-vietnamita e norte-americana para iniciar o difícil e complexo negocial que cristalizaria a derrota americana no Vietname. As escaras da guerra do Vietname, as sequelas da guerra da Argélia em França, o ressurgimento cultural e da contestação política de Berlim nas barbas da guerra fria, a reação ao afastamento de Henri Langlois da Cinemateca francesa, a difícil convivência de De Gaulle e Malraux com o mexer das coisas, a crise estudantil italiana de 1967, o assassinato de Martin Luther King em abril de 1968, as revoluções latino-americanas, a cultura do comunismo da força no centro e leste europeu, enfim um cadinho de roturas e incomodidades, os valores do capitalismo a serem questionados em permanência.

Em suma, lapidarmente resumido por Louçã: “Foi precisamente essa combinação, em vários países, entre a radicalização antiguerra, a cultura crítica da universidade e a rejeição do quotidiano da rotina e da hierarquia que fez nascer Maio de 68” ou ainda “Os exemplos e os estímulos demonstravam que o mundo estava a girar. Mas é possível que tenham sido os fatores culturais mais profundos, o desgaste do produtivismo e do sonho tecnológico, o conflito geracional com a hierarquia social e as normas morais conservadoras a criarem o terramoto que se revela em maio. A juventude é o centro dessas preocupações …”

Estou ainda com Louçã quando ele situa o que ficou de toda esta rotura: “se há uma herança de Maio, que é a dos movimentos sociais que então se expressaram, é a luta contra o sexismo, ou contra o racismo, ou pelos direitos civis, ou pelo ensino publico, ou pelos direitos dos trabalhadores na empresa, que definiram o mínimo de que parte a vida democrática”.

Pode então perguntar-se em que medida estando os jovens, motor da transformação de então, numa situação de fortíssima penalização social, não se assiste de novo a uma profunda radicalização contra este estado de coisas? A resposta não é fácil, mas convém não ignorar que a revolução dos costumes e da vida urbana está feita, mas que a desigualdade é profunda e cada vez mais cavada. O capitalismo não é o mesmo, pois a sua crise de valores, na base dos quais, a defesa e transferência desejável do modelo eram concebidas, é demasiado ampla, não gerando qualquer efeito demonstração. Do outro lado, os sem Voz e representação política são presa fácil dos populismos. Não se antevê que convergência de movimentos facilitadores nos possa conduzir a uma nova rotura clarificadora. Por isso, o Maio de 68 não é tão longínquo como isso.

Sem comentários:

Enviar um comentário