(Estes também invocaram o neoliberalismo)
(Não há expressão que me irrite tanto como a de neoliberalismo.
O que não deixa de ser contraditório pois não estou longe dos quadrantes que
utilizam o vocábulo. As razões da minha irritação devem-se essencialmente
à vulgarização da sua utilização).
Neoliberais
e neoliberalismo andam na boca de quase toda a esquerda, como se de uma expressão
corrente e instrumental se tratasse. Todo o bicho careta se vê na necessidade de
zurzir no que chamam as práticas e as teses neoliberais. O problema é que na
sua esmagadora maioria o vocábulo é utilizado sem a que tal corresponda o domínio
do conceito. Há uma atenuante para tanto disparate. Se de facto é difícil fixar
o conceito de liberalismo, muito mais o é estabilizar o de neoliberalismo. Primeira
convicção: é no plural que devemos falar. A razão para tal está na diversidade
de entendimentos que na própria literatura se agita para cunhar o que quase
toda a esquerda pretende representar.
Por isso, saúdo
sempre com entusiasmo os corajosos que se aventuram a desbravar universo tão
viscoso. Encontrei recentemente um desses exemplos de aprofundamento num blogue
económico que sigo com regularidade, pese embora a sua irregularidade. Mas cada
post é um mini-ensaio ou um projeto de ensaio, o que também dificulta, por
vezes, acusar a sua leitura neste espaço. O blogue é o Uneasy
Money de David Glasner, elaborado seguindo a inspiração de um
economista que aparece raramente na formação de base dos economistas, R.G. Hawtrey.
Pois a 25 de maio, Glasner publicou um artigo designado de “Neo and Other LIberalisms”(link aqui), cuja leitura
se recomenda para quem pretenda ir além da vulgata e compreender a origem e a
datação histórica de tal vocábulo.
Glasner,
socorrendo-se de outras referências, situa a origem do termo neoliberalismo nos
trabalhos de Hayek (o que não é uma surpresa), reportados aos anos 40. Glasner
escreve: “O novo liberalismo era pressuposto emergir
como algo de mais ameno do que a rude versão “laissez-faire” da versão do velho
liberalismo, mais recetivo a intervenções para ajudar os mais desfavorecidos e
a programas de proteção social capazes de assegurar uma rede de segurança a
indivíduos vulneráveis aos riscos económicos do capitalismo moderno, embora
preservando os benefícios sociais e
eficiências de uma economia de mercado baseada na propriedade privada e na
troca voluntária”.
Glasner mostra, no início
dos anos 80, que a herança hayekiana se desvaneceu face à
utilização do termo por dois jovens políticos democratas e ambiciosos, Bill Bradley
e Dick Gephardt, que apresentaram para a economia americana uma proposta
radical de descida de impostos para os escalões mais altos de rendimento acompanhada
pela eliminação de todas as isenções fiscais. O que não deixa de ser algo de
intrigante, aliás como o próprio Glasner o reconhece: a primeira versão do neoliberalismo
pretendia amenizar o radicalismo do laissez- faire, ao passo que a segunda se
situa nos seus antípodas, contrariando o liberalismo social do New Deal. Não
deixa de ser também curioso que as ideias que hoje são presa dos republicanos,
nasceram no âmago dos democratas, que nunca as aplicaram. Mas é curioso notar
que as duas versões do neoliberalismo nascem com objetivos de moderação de agendas
mais extremadas, a do laissez-faire e o pretenso dirigismo do New Deal.
Hoje, a utilização
do vocábulo neoliberalismo reporta a outras intenções e é sobretudo utilizado
pela esquerda mais crítica, quase como significado de financeirização. Costumo
dizer que o neoliberalismo foi cunhado em torno do chamado Consenso de Washington,
enquadramento que dominou a política económica externa americana e das grandes
organizações internacionais, hoje em parte desacreditada.
Moral da história:
a confusão em torno do significado do vocábulo até tem a sua explicação já que
ele corresponde no tempo a objetivos muito diferenciados.
E para aumentar
a complexidade do tema, Glasner aventura-se a uma tentativa de síntese, inspirada
vejam bem em Kant e Hayek: o papel da lei, não o laissez-faire ou a redistribuição do rendimento, é o valor fundamental
e a base do liberalismo. Como é bom de ver, esta conceção leva-nos bem longe. É
que a lei alguém a faz.
Mas isso
fica para uma outra reflexão.
O artigo de
Glasner ajuda-nos, pelo menos, a combater a vulgata de utilização do vocábulo, mais do que
do conceito, de neoliberalismo. Não é coisa pouca.
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