(Por razões de clausura caseira a cuidar de ascendente, tive
tempo de sobra para seguir a discussão no Congresso dos Deputados em Madrid da
moção de censura apresentada por Pedro Sánchez. Não dei por perdido esse tempo.
Afinal foi a oportunidade de assistir ao vivo e em tempo real ao lio
gigantesco em que a situação política espanhola se transformou)
A esgrima
política em que a discussão da moção de censura de hoje se transformou, anunciando
uma vitória mais que provável da moção na votação de amanhã, é de manual. A
agudização das contradições que a publicação da sentença do caso Gürtel
provocou no sistema político espanhol levou as relações entre partidos
constitucionalistas e autonómicos ao rubro e a guerra entre os
constitucionalistas não é menor.
Senão vejamos,
À direita,
temos uma guerra sem quartel entre PP e CIUDADANOS, uma espécie de luta entre o
velho e o novo, com o primeiro, além de decrépito, minado até ao osso pela
corrupção que vai sendo condenada nos tribunais. Esta guerra, se não fosse algo
de violento e decisivo para a reestruturação da direita em Espanha (valeria a
pena seguir e compreender os apoios do CIUDADANOS), poderia dar origem a uma saída
concertada de Rajoy, projetando novas eleições. Não se vê sinais desse pacto, até
porque Rajoy podia com a sua demissão e marcação de eleições anular automaticamente
a moção de censura de Sánchez.
À esquerda,
Sánchez trouxe ao PSOE um golpe de asa, arriscado, contranatura em algumas das
suas dimensões. Depois de apoiar o PP no estabelecimento do 155º, marcando a
sua distância face ao separatismo catalão, reagiu com determinação à não extração
de consequências que Rajoy retirou da sentença Gürtel. Antecipou-se e anunciou
a sua moção de censura que, no quadro constitucional espanhol, faz cair o
governo censurado mas não exigindo novas eleições. Sánchez joga assim
inesperadamente a hipótese de constituir governo com uma maioria que é uma mescla
de esquerda PODEMOS com partidos nacionalistas e autonómicos. Só o partido asturiano
e a União de Navarra apoiam o PP, pelo que através da discussão de hoje a moção
de Sánchez pode ser aprovada com votos do PSOE, dos partidos catalães (PD de
Cat de Puigdemont, Esquerra Republicana, o Podemos-Comú de Colau), do Compromís
valenciano, do Bildu basco e do próprio Partido Nacional Vasco (PNV), podendo
chegar aos 180 votos para uma maioria necessária de 176. Podem dizer-me, mas
que manta está aqui em formação! É verdade, pois há para todos os gostos. Mas
com a moção de censura, e apesar de estimar que o possível governo de Sánchez não
vá muito longe e provavelmente a meados de 2019 as eleições serão inevitáveis,
o PSOE retoma o estatuto (veremos a que preço) do único partido constitucional
que pode ambicionar a uma gestão equilibrada da questão territorial em Espanha.
Foi
confrangedor ouvir o ágil Rivera do Ciudadanos afirmar que poderia votar sim à
primeira dimensão da moção de censura (a condenação da corrupção) mas que não poderia
apoiar a formação de um governo de Sánchez apoiado por forças políticas que,
segundo ele, estão dispostas a quebrar a unidade do Estado espanhol. Como se a
moção não fosse uma coisa una e indivisível.
Mas ouvir os
discursos e contra-réplicas dos partidos nacionalistas e autonómicos foi um exercício
crucial para compreender que a Espanha não tem solução sem uma gestão política
territorial que terá de ser acolhida na Constituição. Do PP e do CIUDADANOS,
apesar das suas diferenças de modernidade, não se vislumbra uma ideia para a
solução da questão territorial. Falar em diversidade como fala o CIUDADANOS não
chega e bastaria ouvir com atenção os discursos regionalistas na sessão de hoje
para compreender que a Espanha una vai ser um problema permanente.
Não direi que
poderá formar-se em Espanha uma espécie de geringonça. Teríamos de arranjar uma
designação ainda mais estapafúrdia, tal é a estranheza da votação que amanhã
provavelmente irá ser concretizada. A questão territorial é de uma grande delicadeza
e não sei sinceramente se Sánchez terá cabedal e arcaboiço para a enfrentar com
maestria e segurança. No debate de hoje, Sánchez apareceu bem mais maduro e
constante, mas pode não chegar para problema tão bicudo.
Não se
imagina que Rajoy, às voltas com o travesseiro na noite de hoje, tenha o seu
golpe de asa e se demita convocando eleições. Mas não são favas contadas. Até a
umas próximas eleições muita água vai correr. Não acredito que Rajoy resista às
clivagens no interior do PP e um novo candidato à liderança pode baralhar a
drenagem de votos do PP para o CIUDADANOS. E o PSOE de Sánchez terá uns meses
para mostrar o que vale em matéria de gestão da questão territorial. Espero tumultos
no interior do PSOE e talvez o Partido Socialista Catalão possa ser o mais beneficiado.
Mas vão ser meses agitados, a começar pela relação entre o putativo novo
Governo e o sistema judicial que está a tratar da questão catalã. Virá aí uma amnistia
para colocar as coisas a zero e tentar recomeçar a negociar?
Os
Parlamentos são de facto a imagem política dos países. O Congresso dos Deputados
que hoje segui mostra-me uma Espanha política bem mais diversa do que este
simples reino da Dinamarca. Para o bem e para o mal.
O editorial
do El País dá o mote para o que aí vem: “Un Gobierno
Inviable”.
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