quinta-feira, 31 de maio de 2018

UMA AULA DE POLÍTICA



(Por razões de clausura caseira a cuidar de ascendente, tive tempo de sobra para seguir a discussão no Congresso dos Deputados em Madrid da moção de censura apresentada por Pedro Sánchez. Não dei por perdido esse tempo. Afinal foi a oportunidade de assistir ao vivo e em tempo real ao lio gigantesco em que a situação política espanhola se transformou)

A esgrima política em que a discussão da moção de censura de hoje se transformou, anunciando uma vitória mais que provável da moção na votação de amanhã, é de manual. A agudização das contradições que a publicação da sentença do caso Gürtel provocou no sistema político espanhol levou as relações entre partidos constitucionalistas e autonómicos ao rubro e a guerra entre os constitucionalistas não é menor.

Senão vejamos,

À direita, temos uma guerra sem quartel entre PP e CIUDADANOS, uma espécie de luta entre o velho e o novo, com o primeiro, além de decrépito, minado até ao osso pela corrupção que vai sendo condenada nos tribunais. Esta guerra, se não fosse algo de violento e decisivo para a reestruturação da direita em Espanha (valeria a pena seguir e compreender os apoios do CIUDADANOS), poderia dar origem a uma saída concertada de Rajoy, projetando novas eleições. Não se vê sinais desse pacto, até porque Rajoy podia com a sua demissão e marcação de eleições anular automaticamente a moção de censura de Sánchez.

À esquerda, Sánchez trouxe ao PSOE um golpe de asa, arriscado, contranatura em algumas das suas dimensões. Depois de apoiar o PP no estabelecimento do 155º, marcando a sua distância face ao separatismo catalão, reagiu com determinação à não extração de consequências que Rajoy retirou da sentença Gürtel. Antecipou-se e anunciou a sua moção de censura que, no quadro constitucional espanhol, faz cair o governo censurado mas não exigindo novas eleições. Sánchez joga assim inesperadamente a hipótese de constituir governo com uma maioria que é uma mescla de esquerda PODEMOS com partidos nacionalistas e autonómicos. Só o partido asturiano e a União de Navarra apoiam o PP, pelo que através da discussão de hoje a moção de Sánchez pode ser aprovada com votos do PSOE, dos partidos catalães (PD de Cat de Puigdemont, Esquerra Republicana, o Podemos-Comú de Colau), do Compromís valenciano, do Bildu basco e do próprio Partido Nacional Vasco (PNV), podendo chegar aos 180 votos para uma maioria necessária de 176. Podem dizer-me, mas que manta está aqui em formação! É verdade, pois há para todos os gostos. Mas com a moção de censura, e apesar de estimar que o possível governo de Sánchez não vá muito longe e provavelmente a meados de 2019 as eleições serão inevitáveis, o PSOE retoma o estatuto (veremos a que preço) do único partido constitucional que pode ambicionar a uma gestão equilibrada da questão territorial em Espanha.

Foi confrangedor ouvir o ágil Rivera do Ciudadanos afirmar que poderia votar sim à primeira dimensão da moção de censura (a condenação da corrupção) mas que não poderia apoiar a formação de um governo de Sánchez apoiado por forças políticas que, segundo ele, estão dispostas a quebrar a unidade do Estado espanhol. Como se a moção não fosse uma coisa una e indivisível.

Mas ouvir os discursos e contra-réplicas dos partidos nacionalistas e autonómicos foi um exercício crucial para compreender que a Espanha não tem solução sem uma gestão política territorial que terá de ser acolhida na Constituição. Do PP e do CIUDADANOS, apesar das suas diferenças de modernidade, não se vislumbra uma ideia para a solução da questão territorial. Falar em diversidade como fala o CIUDADANOS não chega e bastaria ouvir com atenção os discursos regionalistas na sessão de hoje para compreender que a Espanha una vai ser um problema permanente.

Não direi que poderá formar-se em Espanha uma espécie de geringonça. Teríamos de arranjar uma designação ainda mais estapafúrdia, tal é a estranheza da votação que amanhã provavelmente irá ser concretizada. A questão territorial é de uma grande delicadeza e não sei sinceramente se Sánchez terá cabedal e arcaboiço para a enfrentar com maestria e segurança. No debate de hoje, Sánchez apareceu bem mais maduro e constante, mas pode não chegar para problema tão bicudo.

Não se imagina que Rajoy, às voltas com o travesseiro na noite de hoje, tenha o seu golpe de asa e se demita convocando eleições. Mas não são favas contadas. Até a umas próximas eleições muita água vai correr. Não acredito que Rajoy resista às clivagens no interior do PP e um novo candidato à liderança pode baralhar a drenagem de votos do PP para o CIUDADANOS. E o PSOE de Sánchez terá uns meses para mostrar o que vale em matéria de gestão da questão territorial. Espero tumultos no interior do PSOE e talvez o Partido Socialista Catalão possa ser o mais beneficiado. Mas vão ser meses agitados, a começar pela relação entre o putativo novo Governo e o sistema judicial que está a tratar da questão catalã. Virá aí uma amnistia para colocar as coisas a zero e tentar recomeçar a negociar?

Os Parlamentos são de facto a imagem política dos países. O Congresso dos Deputados que hoje segui mostra-me uma Espanha política bem mais diversa do que este simples reino da Dinamarca. Para o bem e para o mal.

O editorial do El País dá o mote para o que aí vem: “Un Gobierno Inviable”.

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