quarta-feira, 17 de abril de 2019

A CATEDRAL DO POVO



(Numa França fraturada e recentemente mergulhada em conflitos sociais e de rua de nova geração, na devastação que o incêndio de Notre Dame representou a resposta e sentimento populares à tragédia impressionaram-me. A história ensina-nos a explicar a espontaneidade dessa emoção.)

Praticamente nada mais de importante haverá a dizer sobre a tragédia de Notre Dame. Na sociedade global em que irreversivelmente estamos mergulhados, é de facto impressionante como se assiste, num ápice, a uma comunhão efetiva de tristeza envolvendo os sítios mais recônditos deste mundo. Mas na França fraturada por diferentes golpes e pela mais estranha ironia do destino quando Macron se preparava para anunciar os reflexos do seu périplo de debate por toda a França em resposta à agitação e reivindicações dos coletes amarelos, não pude ficar indiferente à espontaneidade e sinceridade comoventes da reação dos parisienses mais anónimos, petrificados perante o acontecimento e a devastação do fogo.

A história ensina-nos a explicar o sentimento coletivo de desolação que se abateu sobre a França e pelo mundo que tem respeito e admiração pela cultura e civilização francesas, um marco da nossa herança ocidental que não podemos desprezar, porque já bastam as ameaças que sobre ela pesam. A explicação está no facto de Notre Dame ser uma catedral do povo e menos a catedral da realeza. Yvonne Seale tem no VOX (EUA) uma excelente peça sobre essas raízes, nela incluindo o enorme esforço coletivo que a sua construção original representou. E vale a pena citar um pequeno excerto (link aqui): “Não sabemos ainda qual a forma que a reconstrução irá assumir, mas há algumas certezas: não vai substituir o que se perdeu, particularmente aquela magnífica estrutura de telhado em madeira carinhosamente conhecida pelos historiadores como ‘a floresta’. Foi o resultado de um trabalho em grande medida anónimo de gerações passadas”.

Talvez em contradição com essa dimensão coletiva e popular, as grandes fortunas francesas chegaram-se à frente e anunciam-se contribuições e donativos que já não estarão muito longe dos mil milhões de euros. 


Felizmente pelo acaso da sorte algumas relíquias foram salvas, seguramente insuficientes para compensar o que irreversivelmente se perdeu, designadamente o produto do já mencionado e abnegado trabalho coletivo anónimo (imagens publicadas pela Art Net news, link aqui).

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