quarta-feira, 10 de abril de 2019

A RIQUEZA DO DEBATE ENTRE OS DEMOCRATAS AMERICANOS



(À medida que a governação Trump dá mostras de que só poderá evoluir para pior, o que paradoxalmente não significa uma maior probabilidade da sua derrota futura, o debate no interior dos Democratas começa finalmente a tomar forma. Na linha do que tenho por estas paragens defendido, esse debate transcende a sociedade americana para ganhar espessura e mais largos horizontes.)

A cada substituição forçada de altos representantes da sua Administração percebe-se que o Senhor ou a Senhora que se seguem não dizem apenas mata, mas também esfola. Assim acontecerá com a substituição de Kirstjen Nielsen, Secretária de Estado para os Assuntos Internos. Alguém potencialmente mais sanguinário aparecerá, pois a onda é a do agravamento das condições de acolhimento de migrantes, nem que isso passe por inventar uma América pressionada e não vazia. Noutras áreas da política americana teremos o mesmo padrão.

Entretanto, a movimentação no campo dos Democratas é viva e está a produzir várias linhas de debate cujo alcance está, em meu entender, muito para além da questão americana interna e do seu lugar no mundo.

Trago-vos hoje um material valioso que emergiu para debate através de uma entrevista ao VOX (não confundir com o VOX espanhol) de Bradford DeLong ao jornalista Zack Beauchamp, editada online a 4 de março (link aqui) e que tinha ficado suspensa para leitura mais atenta nos meus arquivos.

O economista americano, tantas vezes aqui citado e que tem uma atividade prodigiosa de comunicação e divulgação de ideias ao serviço da sua própria função de ensino e investigação em Berkeley, tem desenvolvido um amplo e fundamentado trabalho sobre o significado e alcance do termo neoliberalismo económico. Estamos habituados a referenciar o neoliberalismo económico como uma forma de recuperação cega do mercado, sem quaisquer preocupações de redistribuição ou de equidade social e rejeitando a intervenção pública. Pois na terminologia de DeLong e de outros economistas americanos o termo neoliberalismo económico é também utilizado para cunhar o que poderíamos designar de neoliberalismo de esquerda.

O que será então este neoliberalismo económico de esquerda?

DeLong autofilia-se em torno de um grupo de economistas tipo Rubin, escolhendo a personalidade do economista Robert Rubin, secretário de Estado do Tesouro (o ministro das Finanças lá do sítio) do Governo de Clinton. Trata-se de uma posição que defende uma política económica “pró-mercado” (o que não significa pró-business) apontada ao fortalecimento dos fatores de crescimento económico, embora regulada por uma forte consciência social. Nas palavras de DeLong: “largamente neoliberal, orientada para o Mercado e para a regulação do mesmo, e alinhada com fins social-democratas. Implica também um passo na direção do apaziguamento de prioridades conservadoras. O entendimento é o de que se houver uma grande coligação em torno de tal política, ela tenderá a enraizar-se mais fortemente na sociedade americana e ser muito melhor implementada do que se fosse apoiada por uma maioria partidária mais estreita”. Até aqui nada de aparentemente novo. Encontraremos facilmente representantes de uma linha de pensamento similar em gente situada no PS e no PSD. Nos EUA, esta linha marcou vários anos de governação Democrata, com relevo para a administração de Clinton e Obama não andou longe dessa orientação.

A novidade da entrevista de DeLong emerge quando ele analisa as condições políticas necessárias para a tornar virtuosa. Na citação anterior, há uma pequena expressão que nos abre o caminho, “apaziguamento de prioridades conservadoras”. Isto significa que o neoliberalismo económico de esquerda não dispensa uma ampla coligação política com o centro-direita. O que DeLong pretende dizer é que, à medida que o partido Republicano, infestado de pensamento Tea Party e outras formas de radicalismo de direita, desprovidas de qualquer perspetiva de equidade social e apostada na defesa dos interesses do 1% mais rico e outras minorias abastadas, vai sendo minado por tal ideário, deixa de ser possível qualquer acordo alargado sobre a dimensão de algumas reformas. Assim sendo, diz DeLong, o neoliberalismo económico de esquerda deixa de poder ser consequente e de gerar uma administração com resultados positivos e indutora de mais apoios. É essa transição dos Republicanos que explica o acolhimento não unânime de Trump e que traz consigo uma lógica própria que levará à total inviabilização de uma revitalização do partido.

O que fazer então à medida que se torna cada vez mais evidente a ausência de diálogo possível com o centro-direita?

Numa perspetiva que me parece efetiva e não cínica ou demagógica, o que DeLong propõe é que a linha socialista dos Democratas representada por Bernie Sanders (mais velho e reincidente) e Alexandria Ocaso-Cortez (a novidade e a emergente) tome a dianteira e se proponha ela própria a dinamizar uma nova base social e que não necessite da tal coligação à direita, até porque ela não é, com Trump, possível. Por exemplo, fazendo-o através de uma fiscalidade que não hesite em tributar os mais ricos e através de uma taxa-carbono possa financiar um serviço de saúde que Trump tem feito tudo para destruir os alicerces que poderiam conduzir à mudança.

A pergunta inevitável e que o jornalista bem coloca é a de saber o que resta à corrente neoliberal de esquerda fazer? Abster-se de qualquer intervenção para não penalizar a alternativa socialista e permitir-lhe distância e autonomia para poder vingar e encontrar a sua base social de apoio? Sagaz e inteligente, DeLong defende que essa posição traz consigo um grande risco de perda de força na ação política dos Democratas e acho que está cheio de razão. Por isso, o que resta aos democratas pró-mercado (ou rubinianos) é aproximar-se da corrente socialista e não enjeitar diálogo e concertação políticas, o que exige em meu entender uma grande cultura política e democrática. É também óbvio que interessa saber como alinharão neste debate personalidades  como Elizabeth Warren (claramente mais próxima de Sanders e Ocasio-Cortez) com propostas bem ousadas de tributação dos gigantes high-tech ou Beto Rourke (embora neste caso não tenha conseguido ainda descortinar linha de pensamento para o classificar).

Não pode ignorar-se que a dimensão pró-mercado da esquerda liberal esteja isenta de críticas no seu próprio reduto, independentemente da ausência de cooperação à direita. Mike Koncsal é hábil (link aqui) a desenvolver esta perspetiva. Afinal, a lógica de mercado não só não tem proporcionado os ritmos de crescimento económico esperados, como tende ela própria para lógicas concentracionárias que são a sua própria negação (poder de mercado das empresas e monopsónio de procura de trabalho, queda do peso do trabalho no produto e outras).

Tenho para mim que este debate emergente entre os Democratas americanos vai muito para além das futuras eleições americanas. Ele atravessa toda a social-democracia. Com as devidas proporções e tendo em conta a ausência de pensadores relevantes pelo lá de cá do Atlântico, podemos dizer que a polarização e direitização do PSD de Passos conduziram inevitavelmente à geringonça política. Creio que com o seu pragmatismo ideológico, o PCP foi o primeiro a compreender este efeito, bem como António Costa, outro pragmático. Ou seja, o ajustamento da TROIKA, ao ser pensado numa lógica exclusivamente económica e de comportamento cego “pró-mercado” não se apercebeu que estaria a provocar uma profunda alteração nas condições de geração de alternativas políticas em Portugal.

Tudo isto exige uma grande abertura de debate de ideias e muito menos a operação de medição de armas por cada família política, o critério para a repartição do poder efetivo. O desgaste e o estigma das terminologias leva, entre outras coisas, a tornar difícil que muito boa gente por aí se afirme como “neoliberal económico de esquerda”. Mas a esta gente que existe no PS e no PSD aconselharia a não se entrincheirarem numa retranca. Perderão eles próprios e também as orientações mais socialistas. Deixemos que, como está acontecer em Espanha, a própria direita se perturbe e complique a ela própria nas suas contradições, seja a direita alt right seja a que se limita a defender os seus negócios e interesses.

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