quarta-feira, 24 de abril de 2019

MAIS UM MANIFESTO



(Há uma certa esquerda em Portugal que já tinha dado sinais de grande identificação com o independentismo catalão, a coberto de uma perspetiva de alerta da emergência em Espanha de tendências autoritárias, reacionárias e antidemocráticas. O Manifesto ontem publicado no Público dá corpo material a essa posição e justifica uma apreciação crítica do mesmo.)

Está por fazer a sociologia da génese destes manifestos do tipo do que uma certa esquerda portuguesa subscreveu ontem no Público (link aqui). Sou dos que penso que subjacente a um direito inalienável em democracia de formalização do pensamento e com isso agitar consciências e combater inércias nefastas, estamos perante processos cuja adesão de assinaturas está frequentemente a milhas de um processo natural de convergência de ideias. Muitos destes manifestos vêm-se frequentemente rodeados de redes de amizade e de relacionamento próximo em que também muitas vezes a mobilização da assinatura vem primeiro e a análise das ideias neles expressas depois. Estou à vontade nesta matéria porque neste meu estatuto de invisível social pelos padrões correntes da formação de correntes de opinião, sobretudo lá para os lados da capital, contam-se pelos dedos de uma mão a existência de convites para os subscrever. Podem crer que não é o despeito pelo isolamento a falar, é mesmo a incomodidade de alinhar com coletivos deste tipo que obedecem aos seus rituais.

Dois dos assinantes do Manifesto “Pela democracia e pelas liberdades na Catalunha”, José Pacheco Pereira e Manuel Loff, ambos historiadores, aliás amplamente representados nos subscritores, já tinham dado o mote para o pensamento que subjaz ao documento. Pacheco Pereira tinha sido mesmo o anfitrião numa sessão pública em Lisboa em que o palco foi oferecido a Quim Torra, líder conjuntural da Generalitat e uma peça claramente menor e algo desconchavada dos protagonistas do movimento independentista.

O elemento fundamental de agregação do Manifesto é a ideia de que os líderes independentistas presos e no estrangeiro fora da alçada do sistema judicial espanhol na sequência do processo que lhes foi instaurado após o referendo ilegal realizado na Catalunha são presos e exilados políticos, respetivamente. Em torno desse foco, giram depois ideias sobre a natureza eminentemente política do conflito catalão, o ressurgimento da Espanha autoritária e antidemocrática e mais do que isso a ideia de que na Catalunha se vive um contexto de rotura e ataque à democracia.

Não tenho qualquer pejo em afirmar que o manifesto, embora partindo de um argumento que partilho, a questão catalã é eminentemente política, não me suscita qualquer simpatia e lamento mesmo que tantos historiadores subscritores não tenham resistido a uma tomada de posição de velhas convergências, que se compreende sobretudo num Pacheco Pereira talvez cansado de tanto isolamento no contexto do seu partido e desejoso de regressar à adrenalina das suas origens.

Há várias matérias para convocar a falta de rigor histórico quanto à mobilização frequentemente viciada que o independentismo faz da história. Só a discussão aberta e abrangente do posicionamento catalão ao longo da história daria para um bom curso anual. Pelo que tenho lido de gente não propriamente enfeudada no centralismo reacionário espanhol, mas de gente respeitada em academias americanas e europeias, não compro a invocação da história para justificar a pretensa superioridade político-moral do independentismo na Catalunha.

Por outro lado, a alusão à ideia de que na Catalunha se vive uma rotura democrática é tonta e não tem ponta por onde se lhe pegue. Foi, pelo contrário, o independentismo que na rampa de lançamento para o aventureirismo do referendo que deu mostras de destruição da convivência democrática que se vivia na Catalunha quando o catalanismo não independentista dominava o sentimento de identidade regional. Essa destruição da convivência democrática traduziu-se em formas inaceitáveis de condicionamento, pressão e violência ideológica sobre os não independentistas e assumiu muitas vezes formas de supremacismo face às restantes Espanhas que são formas veladas de intolerância democrática e intrinsecamente perigosas pelas reações de despeito que tendem a gerar na Espanha mais profunda.

A questão catalã é obviamente política e o PP de Rajoy cometeu um grave erro ao judicializar plenamente o processo. Mas negar o mais puro aventureirismo dos Puigdemont e seus comparsas representa um infantilismo político que julgava arredado de políticos tão experientes, que parecem querer voltar às manifestações mais pueris do esquerdismo. Para além disso, tenho seguido com alguma proximidade as sequências mais mediáticas do julgamento de Madrid e por muito que me tenha esforçado não tenho topado com nenhuma evidência de atrocidades legais ou processuais. Aliás, o diferente posicionamento no julgamento dos testemunhos dos diferentes implicados é todo ele um manual das inconsistências observáveis na aliança independentista.

Não resisto a citar um excerto do Manifesto:

A acusação de “sedição” (isto é: o “levantamento coletivo de natureza contestatária contra as autoridades ou poderes estabelecidos, geralmente de carácter violento”) representa uma evidente tentativa de criminalização de uma atitude política. Mas enferma também de falta de objetividade: televisões e jornais do mundo inteiro mostraram claramente que foi o Estado espanhol que encetou uma mobilização sem precedentes de forças policiais para usarem a força contra cidadãs e cidadãos indefesos, e para tentarem impedir a realização do referendo de outubro de 2017. O processo atual contra os independentistas catalães põe assim um sério problema de liberdades públicas e de democracia. E tanto mais quanto a justiça espanhola é considerada como uma das mais politizadas da Europa e largamente suspeita de fraca imparcialidade.”

O que pude constatar no dia do controverso referendo de outubro de 2017 e dias seguintes foi uma monumental campanha de manipulação mediática conduzida nos meios de comunicação internacionais pela Generalitat e pela televisão regional, que depois se esvaneceu dadas as suas contradições.

Estou com curiosidade em conhecer domingo que vem os resultados das eleições gerais na Catalunha, onde como se sabe o PSOE se faz substituir pelo Partido Socialista Catalão de Iceta, encravado entre os independentistas e o CIUDADANOS e claramente penalizado pelo apagamento do catalanismo identitário não independentista. Cheira-me que os subscritores do Manifesto não vão ficar lá muito contentes com o resultado.

Dou comigo satisfeito com a evidência autocompreendida de que o meu envelhecimento inexorável não me atira felizmente para os lados do infantilismo político de esquerda, sem contudo me submeter à inércia do reacionarismo.

De mal o menos.

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