(Há uma certa esquerda em Portugal que já tinha dado
sinais de grande identificação com o independentismo catalão, a coberto de uma
perspetiva de alerta da emergência em Espanha de tendências autoritárias,
reacionárias e antidemocráticas. O Manifesto ontem publicado no Público dá corpo material
a essa posição e justifica uma apreciação crítica do mesmo.)
Está por fazer a sociologia da génese destes manifestos do tipo do que uma
certa esquerda portuguesa subscreveu ontem no Público (link aqui). Sou dos que penso que
subjacente a um direito inalienável em democracia de formalização do pensamento
e com isso agitar consciências e combater inércias nefastas, estamos perante
processos cuja adesão de assinaturas está frequentemente a milhas de um
processo natural de convergência de ideias. Muitos destes manifestos vêm-se
frequentemente rodeados de redes de amizade e de relacionamento próximo em que
também muitas vezes a mobilização da assinatura vem primeiro e a análise das
ideias neles expressas depois. Estou à vontade nesta matéria porque neste meu
estatuto de invisível social pelos padrões correntes da formação de correntes
de opinião, sobretudo lá para os lados da capital, contam-se pelos dedos de uma
mão a existência de convites para os subscrever. Podem crer que não é o despeito
pelo isolamento a falar, é mesmo a incomodidade de alinhar com coletivos deste tipo
que obedecem aos seus rituais.
Dois dos assinantes do Manifesto “Pela democracia e pelas liberdades na
Catalunha”, José Pacheco Pereira e Manuel Loff, ambos historiadores,
aliás amplamente representados nos subscritores, já tinham dado o mote para o
pensamento que subjaz ao documento. Pacheco Pereira tinha sido mesmo o anfitrião
numa sessão pública em Lisboa em que o palco foi oferecido a Quim Torra, líder
conjuntural da Generalitat e uma peça claramente menor e algo desconchavada dos
protagonistas do movimento independentista.
O elemento fundamental de agregação do Manifesto é a ideia de que os líderes
independentistas presos e no estrangeiro fora da alçada do sistema judicial
espanhol na sequência do processo que lhes foi instaurado após o referendo
ilegal realizado na Catalunha são presos e exilados políticos, respetivamente. Em
torno desse foco, giram depois ideias sobre a natureza eminentemente política
do conflito catalão, o ressurgimento da Espanha autoritária e antidemocrática e
mais do que isso a ideia de que na Catalunha se vive um contexto de rotura e
ataque à democracia.
Não tenho qualquer pejo em afirmar que o manifesto, embora partindo de um argumento
que partilho, a questão catalã é eminentemente política, não me suscita qualquer
simpatia e lamento mesmo que tantos historiadores subscritores não tenham
resistido a uma tomada de posição de velhas convergências, que se compreende
sobretudo num Pacheco Pereira talvez cansado de tanto isolamento no contexto do
seu partido e desejoso de regressar à adrenalina das suas origens.
Há várias matérias para convocar a falta de rigor histórico quanto à mobilização
frequentemente viciada que o independentismo faz da história. Só a discussão
aberta e abrangente do posicionamento catalão ao longo da história daria para
um bom curso anual. Pelo que tenho lido de gente não propriamente enfeudada no
centralismo reacionário espanhol, mas de gente respeitada em academias americanas
e europeias, não compro a invocação da história para justificar a pretensa superioridade
político-moral do independentismo na Catalunha.
Por outro lado, a alusão à ideia de que na Catalunha se vive uma rotura
democrática é tonta e não tem ponta por onde se lhe pegue. Foi, pelo contrário,
o independentismo que na rampa de lançamento para o aventureirismo do referendo
que deu mostras de destruição da convivência democrática que se vivia na Catalunha
quando o catalanismo não independentista dominava o sentimento de identidade
regional. Essa destruição da convivência democrática traduziu-se em formas inaceitáveis
de condicionamento, pressão e violência ideológica sobre os não independentistas
e assumiu muitas vezes formas de supremacismo face às restantes Espanhas que são
formas veladas de intolerância democrática e intrinsecamente perigosas pelas
reações de despeito que tendem a gerar na Espanha mais profunda.
A questão catalã é obviamente política e o PP de Rajoy cometeu um grave
erro ao judicializar plenamente o processo. Mas negar o mais puro aventureirismo
dos Puigdemont e seus comparsas representa um infantilismo político que julgava
arredado de políticos tão experientes, que parecem querer voltar às manifestações
mais pueris do esquerdismo. Para além disso, tenho seguido com alguma proximidade
as sequências mais mediáticas do julgamento de Madrid e por muito que me tenha
esforçado não tenho topado com nenhuma evidência de atrocidades legais ou
processuais. Aliás, o diferente posicionamento no julgamento dos testemunhos dos
diferentes implicados é todo ele um manual das inconsistências observáveis na
aliança independentista.
Não resisto a citar um excerto do Manifesto:
“A acusação de “sedição” (isto é: o
“levantamento coletivo de natureza contestatária contra as autoridades ou
poderes estabelecidos, geralmente de carácter violento”) representa uma
evidente tentativa de criminalização de uma atitude política. Mas enferma
também de falta de objetividade: televisões e jornais do mundo inteiro
mostraram claramente que foi o Estado espanhol que encetou uma mobilização sem
precedentes de forças policiais para usarem a força contra cidadãs e cidadãos
indefesos, e para tentarem impedir a realização do referendo de outubro de
2017. O processo atual contra os independentistas catalães põe assim um sério
problema de liberdades públicas e de democracia. E tanto mais quanto a justiça
espanhola é considerada como uma das mais politizadas da Europa e largamente
suspeita de fraca imparcialidade.”
O que pude constatar no dia do controverso referendo de outubro de 2017 e
dias seguintes foi uma monumental campanha de manipulação mediática conduzida
nos meios de comunicação internacionais pela Generalitat e pela televisão
regional, que depois se esvaneceu dadas as suas contradições.
Estou com curiosidade em conhecer domingo que vem os resultados das eleições
gerais na Catalunha, onde como se sabe o PSOE se faz substituir pelo Partido
Socialista Catalão de Iceta, encravado entre os independentistas e o CIUDADANOS
e claramente penalizado pelo apagamento do catalanismo identitário não independentista.
Cheira-me que os subscritores do Manifesto não vão ficar lá muito contentes com
o resultado.
Dou comigo satisfeito com a evidência autocompreendida de que o meu envelhecimento
inexorável não me atira felizmente para os lados do infantilismo político de
esquerda, sem contudo me submeter à inércia do reacionarismo.
De mal o menos.
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