domingo, 14 de abril de 2019

A VIGATA IMAGINÁRIA QUE BEM CONHECEMOS



(Já em preparação de sentidos para a estreia da última série de A Guerra dos Tronos no SY FY da NOS (canal 90), segunda-feira às 22.15, tempo para uma digressão de prazer por uma última descoberta televisiva, o Comissário Montalbano dos fins de tarde de sábado e domingo no Canal 2. A luz irrepetível do Mediterrâneo, aquele cantar do italiano nos ouvidos e o grupo de personagens em torno do Comissário fazem-nos vogar ao sabor de um tempo a que já não estávamos habituados em televisão.)

Pois é assim. O canal 2 traz-nos por vezes algumas preciosidades, fazendo-nos recordar os benefícios do serviço público de televisão, alinhado com preciosidades ameaçadas pela voracidade dos novos tempos do facilitismo piroso, do kitsch mais obsceno e pela imbecilidade humana.

Por mera coincidência de zapping desesperado em busca de algo que se veja com prazer, dei conta de uma série da RAI que tem passado nos tempos do fim de tarde de sábados e domingos, centrado na figura de um Comissário chamado de Salvo Montalbano. Por curiosidade dos tempos, o Comissário é interpretado por Luca Zingaretti, irmão de outro Zingaretti, Nicola, do qual se espera o ressurgimento tão necessário do Partido Social-Democrata italiano, hoje simplesmente designado de PD.

Também pela convergência do acaso que tanto aprecio, o Babelia de ontem, suplemento literário do El País, dedica uma excelente crónica à literatura centrada nesse inolvidável Mediterrâneo, no âmbito da qual emerge o laborioso Andrea Camilleri (escreve que se farta) autor da personagem e das histórias de Montalbano.

Na pequena cidade (imaginária) de Vigata em que as histórias de Montalbano se desenvolvem, que triangula com outras duas cidades (Palermo obviamente essa joia siciliana e Génova onde reside e trabalha a companheira Lívia de Montalbano) respira-se a pacatez bem típica da Sicília dos paradoxos. Uma pacatez que pode ser perturbada a todo o momento por uma evidência de violência, nem sempre associada ao crime organizado e às atividades fraudulentas da Máfia, aqui apresentada como em transição para um mundo de negócios mais diverso, com a construção civil à cabeça. Aliás essa é uma das características que diferenciam os episódios conforme se cruzem ou não com a colisão entre grupos rivais. Mas há sempre a presença de mulheres misteriosas, crimes sexuais, a imigração ilegal, a construção clandestina e a economia informal, outras aberrações do comportamento humano numa trama que se prolonga até ao fim de cada episódio, em diálogo permanente com o mar, a pobreza dos lugares mais recônditos, moradias belíssimas com vistas deslumbrantes sobre o Mediterrâneo. Montalbano é um comissário de métodos bastante heterodoxos, sagaz, com grande ligação à sociedade local e defensor daquela máxima religiosa “enquanto se curte uma refeição não se fala”. As suas passagens pelos restaurantes locais abre o apetite a qualquer um que se deleite com a comida italiana mais tradicional, como o são aqueles tentadores “anti-pasti com frutti di mare” que em muitos episódios me provocam o palato.

Mergulhados que estamos na rotina do ritmo da ficção americana e com o inglês-americano a martelar-nos os ouvidos, uma série com o ritmo e a musicalidade do italiano dos episódios do Comissário Montalbano é, nos tempos que correm, uma preciosidade, mostrando que pode haver uma produção europeia disputando quotas de mercado mais inteligentes e sensíveis.

As tramas e os personagens diversos que giram em torno de Montalbano são uma boa descoberta.

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