(Não, não se trata de mais uma reflexão sobre o independentismo catalão. Pelo
contrário, é do regresso de Barcelona ao urbanismo pioneiro que já protagonizou
noutros tempos, liderada por uma esquerda desenquadrada e que tem resistido aos
cânticos do independentismo. É de Cidades sem carros que se trata.)
É percetível que a áurea de Barcelona já não é a mesma, sobretudo se for confrontada
com o protagonismo de outras décadas alicerçado na experimentação urbana de vários
matizes e configurações, com o planeamento estratégico a aproximar-se do que
gostamos de ler nos manuais.
Talvez pelo facto de ser naturalmente palco de tudo quanto é manifestação e
outros eventos a favor e contra a secessão desejada e também por ser
ultimamente liderada por uma força política (Ada Colau e o movimento Barcelona
en Comú, aparentada com o PODEMOS mas sem com ele se identificar plenamente)
ainda à procura de consistência sustentável, a verdade é que esse tipo de
protagonismo tem apagado o protagonismo a que chamo de virtuoso. Para mim, esse
protagonismo virtuoso é o que decorre de inovações na gestão e na afirmação
urbanas de uma Cidade que já foi modelo e inspiração de muitas das ondas que têm
atravessado o planeamento urbano. Além disso, o ainda recente acontecimento
terrorista nas Ramblas contribuiu também para mudar o foco nas experiências
mais inovadoras que, embora a ritmo muito mais lento, do que o observado nos
seus tempos áureos.
Por outro lado, a governação da militante dos temas da habitação Ada Colau,
embora seguida por todo o mundo pelas frentes da esquerda mais basista,
militante da defesa intransigente do espaço público e ferozmente crítica das
forças partidárias mais tradicionais, está longe de ter a consistência dos
tempos de Pascual Maragall, por exemplo.
Mas isso não significa que, noutra escala menos abrangente, em Barcelona não
continuem a ser referenciadas experiências de gestão urbana que se situam da
mera experiência pontual e para projeto Europeu ver e apoiar.
Trago-vos hoje o tema do urbanismo ou da Cidade sem carros, mas não o da
experimentação de circunstância para um dia no ano. O urbanismo sem carros com
impacto efetivo na gestão urbana e na configuração das suas convivialidades é
tema que pode estar no coração da descarbonização das Cidades, como ponto de
entrada e de amplificação de algo mais vasto, uma economia e uma sociedade menos
dedicadas às emissões de gases com efeito estufa.
Em conformidade com outras experiências pioneiras no passado da Cidade, que
tanto animaram conferências, seminários e manuais de boas práticas inspiradoras,
também aqui temos um pensamento de referência, digamos um animador que pensa as
transformações. Neste caso, é de Salvador Rueda que se trata, a quem se deve a
criação da Agência de Ecologia Urbana de Barcelona em 2000. A utopia de Rueda
(e quanto precisamos hoje de novas utopias!) é a de uma Cidade dominada por
espaços de usos múltiplos e mistos, para circulação a pé ou de bicicleta em diálogo
com outros usos menos a viatura própria. A esses espaços integradores de uma nova
filosofia de cidade Rueda designa-os de “super –blocos ou super-quarteirões” e
ambição não falta: mais de metade das artérias dedicadas ao transporte automóvel
terão de ser reconvertidas e organizadas para o desenvolvimento e animação
destes super-quarteirões. Dos cinco super-espaços já operativos a ambição
aponta para uma multiplicação para cerca de mais 495 super-blocos: ambição ou
utopia pode questionar-se, numa espécie de antecipação de uma grande Cidade na
civilização do pós viatura própria. Uma das curiosidades destes super-espaços é
o de permitirem a entrada de viaturas para residentes, fazendo-as circular em pavimentos
que se situam ao mesmo nível e em estreita proximidade com a circulação pedonal,
numa espécie de modelo como aquele em que o metro do Porto circula pela Rua
Brito Capelo em Matosinhos, junto ao meu local de trabalho.
A reportagem do jornal americano que me serve de referência (link aqui) (quando
escrevo estão dois de uma série anunciada de 5 publicados) tem por base uma investigação
da Universidade de Pensilvânia. A reportagem coloca Barcelona na linha e na
dianteira de um movimento que em escala e intensidade diversas anima já algumas
cidades europeias e mundiais.
O plano que enquadra a gestão e o desenvolvimento urbanístico de Barcelona
e principalmente a regulação dos seus fortíssimos níveis de concentração (e de
ruído) é influenciado pelo pensamento e visão de Rueda. No âmbito do que a liderança
política do município designa de urbanismo tático (para a transição) e
estrutural (para a visão de longo prazo), será interessante acompanhar no
futuro a gestão desses dois níveis do compromisso histórico que a visão de Rueda
suscita. Sobretudo tirando partido da experimentação das mudanças operadas nos
5 super-blocos hoje operativos. A reação de residentes e de operadores económicos
localizados nas áreas de intervenção é, por vezes inesperada e compreende-se a necessidade
do tal urbanismo tático. Mas, como sabemos, grande parte das vezes o prolongamento
dessas transições inviabiliza de vez a solução estrutural. Por isso, visão e
planeamento participativo/colaborativo são dimensões que não podem dissociar-se
uma da outra, sem ignorar que a situação política na própria Cidade pode trazer
inflexões e recuos insanáveis.
Mas é reconfortante pensar que a utopia urbana não desapareceu dos nossos
referenciais de planeamento urbano. Mas nem toda a gente está no mesmo estádio
para exercitar essa utopia. Por cá, conhecemos a inércia habitual: qualquer limitação
à circulação de viatura própria é estigmatizada pelas ameaças e lamentações da
perda de negócio e de emprego. O problema essas perdas é, regra geral, outro. Quando
desço a Rua de 31 de janeiro ou de S. António no Porto tenho imediatamente essa
perceção. E não creio que tenha sido qualquer problema de circulação a
determinar o declínio.
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