quinta-feira, 11 de abril de 2019

BARCELONA



(Não, não se trata de mais uma reflexão sobre o independentismo catalão. Pelo contrário, é do regresso de Barcelona ao urbanismo pioneiro que já protagonizou noutros tempos, liderada por uma esquerda desenquadrada e que tem resistido aos cânticos do independentismo. É de Cidades sem carros que se trata.)

É percetível que a áurea de Barcelona já não é a mesma, sobretudo se for confrontada com o protagonismo de outras décadas alicerçado na experimentação urbana de vários matizes e configurações, com o planeamento estratégico a aproximar-se do que gostamos de ler nos manuais.

Talvez pelo facto de ser naturalmente palco de tudo quanto é manifestação e outros eventos a favor e contra a secessão desejada e também por ser ultimamente liderada por uma força política (Ada Colau e o movimento Barcelona en Comú, aparentada com o PODEMOS mas sem com ele se identificar plenamente) ainda à procura de consistência sustentável, a verdade é que esse tipo de protagonismo tem apagado o protagonismo a que chamo de virtuoso. Para mim, esse protagonismo virtuoso é o que decorre de inovações na gestão e na afirmação urbanas de uma Cidade que já foi modelo e inspiração de muitas das ondas que têm atravessado o planeamento urbano. Além disso, o ainda recente acontecimento terrorista nas Ramblas contribuiu também para mudar o foco nas experiências mais inovadoras que, embora a ritmo muito mais lento, do que o observado nos seus tempos áureos.

Por outro lado, a governação da militante dos temas da habitação Ada Colau, embora seguida por todo o mundo pelas frentes da esquerda mais basista, militante da defesa intransigente do espaço público e ferozmente crítica das forças partidárias mais tradicionais, está longe de ter a consistência dos tempos de Pascual Maragall, por exemplo.

Mas isso não significa que, noutra escala menos abrangente, em Barcelona não continuem a ser referenciadas experiências de gestão urbana que se situam da mera experiência pontual e para projeto Europeu ver e apoiar.

Trago-vos hoje o tema do urbanismo ou da Cidade sem carros, mas não o da experimentação de circunstância para um dia no ano. O urbanismo sem carros com impacto efetivo na gestão urbana e na configuração das suas convivialidades é tema que pode estar no coração da descarbonização das Cidades, como ponto de entrada e de amplificação de algo mais vasto, uma economia e uma sociedade menos dedicadas às emissões de gases com efeito estufa.

Em conformidade com outras experiências pioneiras no passado da Cidade, que tanto animaram conferências, seminários e manuais de boas práticas inspiradoras, também aqui temos um pensamento de referência, digamos um animador que pensa as transformações. Neste caso, é de Salvador Rueda que se trata, a quem se deve a criação da Agência de Ecologia Urbana de Barcelona em 2000. A utopia de Rueda (e quanto precisamos hoje de novas utopias!) é a de uma Cidade dominada por espaços de usos múltiplos e mistos, para circulação a pé ou de bicicleta em diálogo com outros usos menos a viatura própria. A esses espaços integradores de uma nova filosofia de cidade Rueda designa-os de “super –blocos ou super-quarteirões” e ambição não falta: mais de metade das artérias dedicadas ao transporte automóvel terão de ser reconvertidas e organizadas para o desenvolvimento e animação destes super-quarteirões. Dos cinco super-espaços já operativos a ambição aponta para uma multiplicação para cerca de mais 495 super-blocos: ambição ou utopia pode questionar-se, numa espécie de antecipação de uma grande Cidade na civilização do pós viatura própria. Uma das curiosidades destes super-espaços é o de permitirem a entrada de viaturas para residentes, fazendo-as circular em pavimentos que se situam ao mesmo nível e em estreita proximidade com a circulação pedonal, numa espécie de modelo como aquele em que o metro do Porto circula pela Rua Brito Capelo em Matosinhos, junto ao meu local de trabalho.

A reportagem do jornal americano que me serve de referência (link aqui) (quando escrevo estão dois de uma série anunciada de 5 publicados) tem por base uma investigação da Universidade de Pensilvânia. A reportagem coloca Barcelona na linha e na dianteira de um movimento que em escala e intensidade diversas anima já algumas cidades europeias e mundiais.

O plano que enquadra a gestão e o desenvolvimento urbanístico de Barcelona e principalmente a regulação dos seus fortíssimos níveis de concentração (e de ruído) é influenciado pelo pensamento e visão de Rueda. No âmbito do que a liderança política do município designa de urbanismo tático (para a transição) e estrutural (para a visão de longo prazo), será interessante acompanhar no futuro a gestão desses dois níveis do compromisso histórico que a visão de Rueda suscita. Sobretudo tirando partido da experimentação das mudanças operadas nos 5 super-blocos hoje operativos. A reação de residentes e de operadores económicos localizados nas áreas de intervenção é, por vezes inesperada e compreende-se a necessidade do tal urbanismo tático. Mas, como sabemos, grande parte das vezes o prolongamento dessas transições inviabiliza de vez a solução estrutural. Por isso, visão e planeamento participativo/colaborativo são dimensões que não podem dissociar-se uma da outra, sem ignorar que a situação política na própria Cidade pode trazer inflexões e recuos insanáveis. 

Mas é reconfortante pensar que a utopia urbana não desapareceu dos nossos referenciais de planeamento urbano. Mas nem toda a gente está no mesmo estádio para exercitar essa utopia. Por cá, conhecemos a inércia habitual: qualquer limitação à circulação de viatura própria é estigmatizada pelas ameaças e lamentações da perda de negócio e de emprego. O problema essas perdas é, regra geral, outro. Quando desço a Rua de 31 de janeiro ou de S. António no Porto tenho imediatamente essa perceção. E não creio que tenha sido qualquer problema de circulação a determinar o declínio.

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