sábado, 31 de outubro de 2020

VOTAR EM JOE BIDEN

(Kevin Kallaugher, KAL, https://www.economist.com)

 

Depois da pronúncia do “Financial Times” a que aqui já aludi, a “The Economist” não podia deixar de vir à liça para obviamente proclamar algo na mesma direção, no caso sob a incontestável fórmula “porque tem de ser Joe Biden”. Claro que foram já muitos e notáveis os meios de comunicação social que explicitaram a sua opção quanto às presidenciais americanas da próxima Terça-Feira (o que é, aliás, relativamente vulgar acontecer por lá; daí que opte por abaixo evidenciar o modo discreto mas eficiente com que a “Der Spiegel” se distancia de Trump).

 

Entretanto, as sondagens e os cálculos de probabilidades de vitória apontam generalizadamente para o triunfo do homem normal (será este o segredo para vencer Trump, como há dias perguntava Ricardo Costa?) e do democrata centrista que é Biden (vejam-se os dois gráficos mais abaixo  85% contra 14%, segundo a “Fivethirtyeight”), mas com a mentirosa e desonesta astúcia de Trump, a boçalidade do americano médio, as dúvidas em vários swing States e os russos por perto há que nunca fiar...



(a partir de http://elpais.com)


(a partir de http://elpais.com)

OPERAÇÃO COZINHA

 

(Desde o colapso do sistema bancário e financeiro registado em resultado da crise de 2008, a política espanhola nunca mais foi a mesma. Tudo se passa como se cavarmos um pouco mais fundo na complexidade dos factos encontramos sempre algo de mais grave. As péssimas condições de governabilidade que a extremamente vulnerável coligação PSOE-PODEMOS tem vindo a proporcionar completam-se agora com o que vai sendo desvendado relativamente ao nebuloso período de fim de ciclo para o PP, que precedeu a ascensão ao poder de Pedro Sánchez. E o que se vai percebendo não é nada bonito …)

No rescaldo da crise financeira de 2007-2008, o famoso caso Gürtel, cuja investigação terá começado segundo os meus registos em 2007, abalou a política espanhola, tão densa que era a trama de corrupção. Não é esse caso que me conduz ao post de hoje, embora a raiz de acontecimentos posteriores de grande repercussão esteja associada a esse caso.

No meio das vastas e picantes revelações que esse caso Gürtel nos trouxe, houve na altura uma acusação que, embora tivesse produzido impacto, talvez não se antecipasse então o que ela iria gerar como consequências mais profundas. No meio da corrupção que o Gürtel revelou, ficou a saber-se que o antigo tesoureiro do PP Luís Bárcenas, condenado por esse caso a 33 anos de prisão em 2018, se tinha abotoado ao que não lhe era devido, com cenas de contas clandestinas na Suiça e todo o rol de evidências que este tipo de casos costuma trazer consigo. Muito antes de ser condenado, não só em Portugal que estes casos levam a tempo a deslindar, mais propriamente em 2013, Luís Bárcenas, talvez incomodado pela falta de apoio do partido a que prestou serviços, decidiu pôr a boca no trombone, procurando salvaguardar a posição da sua mulher e família. E o que fez o antigo Tesoureiro? Resolveu colocar a nu problemas no financiamento do PP durante quase cerca de uma década e todos nos recordamos dos célebres registos contabilísticos manuais que apareceram pelas páginas do El País, jornal que assumiu a denúncia pública de todos os esquemas menos claros que rodeavam o financiamento do PP. Todos nos recordamos também da misteriosa referência nesses registos a um tal senhor X, que a investigação sugeria poder ser o próprio Rajoy.

A partir do momento em que em fevereiro de 2013 o El País revelou os registos de Bárcenas e que no dia 15 de julho do mesmo ano o ex-tesoureiro se apresentou junto do Juiz de Instrução encarregado do processo, o PP passou a viver dentro de uma autêntica bomba de relógio, que poderia rebentar a qualquer momento. O que se sabe agora, a partir de uma operação designada de “Operação Kitchen” e à qual o El País tem dado a devida cobertura (link aqui), é que para neutralizar essa bomba o governo de Rajoy (discute-se nos tribunais se com o conhecimento e consentimento do ex-primeiro Ministro) concebeu e implementou uma complexa operação, sem conhecimento e informação prestados ao Juiz do processo, por conseguinte uma operação sem mandato expresso e sem cobertura legal.

O objetivo da operação era conseguir expurgar dos computadores de Bárcenas a informação gravosa e mais comprometedora para o PP, organizada com fundos que não é possível ainda identificar. Tudo leva a crer que o objetivo da Operação Kitchen foi atingido, embora seja também claro aos olhos da justiça espanhola que ela foi concretizada totalmente à margem do processo judicial então em curso e do Juiz responsável. Hoje em tribunal, políticos, por um lado e polícias por outro esgrimem argumentos quanto ao desconhecimento da operação (os primeiros) e demonstração do seu convencimento quanto à legalidade da operação (os segundos). Existem, obviamente, outros pormenores no meio desta trama, incluindo o facto do responsável físico pela entrada no apartamento de Bárcenas e condicionamento da sua família para análise dos computadores caseiros e extração de informação relevante não estar hoje em condições mentais de prestação de depoimento.

Como bem se compreende, toda esta trama gera “uma dependência de percurso” com séria influência no relacionamento entre as principais forças políticas espanholas. O ambiente não permite como nos computadores aquele “reset” milagroso e salvador que volta a colocar as coisas nos eixos. Nesse aspeto, é de bom tom recordar que Pablo Casado herda uma nebulosa situação partidária no PP, da qual parece finalmente recuperar, sem “reset”, mas pelo menos com a eliminação de pontos críticos no sistema. Mas isso não significa que, eventualmente, à mínima cavadela, surja mais um incómodo da história.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

LETTER TO YOU

 

(O BOSS é inesgotável. A sua autenticidade e a presença permanente das suas raízes alimentam uma torrente criativa que no ambiente único da E-Street Band e das suas memórias encontra o espaço de conforto para se manifestar pujante e sempre renovada. LETTER TO YOU, o documentário que a APPLE TV nos oferece é um monumento único, um tempo de esperança, de ânimo e sensibilidade neste momento tão complexo ...)

Eu bem sei que, nestes tempos de incerteza, de confinamento sem estar confinado, a minha sensibilidade está no auge, que estou um sentimentalão, recetivo a qualquer mensagem mais forte que me toque. Ressalvado este contexto, posso-vos dizer que a visualização do documentário de Bruce Springsteen apresentado pela APPLE TV e produzido em torno da gravação do LETTER TO YOU é um monumento de televisão (trailer aqui).

Claro que o Bruce é um caso à parte, envolvendo avô, filhos e pelo menos o meu neto Pedro que delirava com os “You Tubes” do Bruce ainda há muito pouco tempo. A leitura do BORN TO RUN, a autobiografia de Bruce, preparou-me para este filme, não tenho dúvidas sobre isso. O LETTER TO YOU é em termos musicais Springsteen no auge da sua criatividade, sempre atento à herança incontornável de Dylan e trabalhando as suas raízes e de adolescente cedo órfão de Pai, embora com ele tivesse uma relação tumultuosa.

Mas o que encanta na produção para a APPLE TV é a ambiência única da criação coletiva da E-Street Band a partir da visão individual de Bruce. Entrecortando imagens belíssimas sobre a neve caindo no rural e na floresta americana com o contexto de cada canção, o filme acompanha a gestação criativa da Banda, canção a canção, sempre precedida de uma reflexão sobre os temas que deram origem às canções que integram este último álbum. Do lirismo mais simples e comovente à força daquelas batidas empolgantes que só a E-Street consegue arrancar, sempre com a memória e recordação do Clarence Clemons (penso que Jack Clemons será seu filho) e do Danny Federici a pairarem naquela atmosfera criativa, vamos percebendo o significado e a felicidade que aquela atmosfera representa para o casal Springsteen -Scialfa.

Com o filme a caminhar para o fim, veio-me à ideia a convicção de que a obra de Springsteen e sobretudo este LETTER TO YOU representa bem o que a América nos anunciava, Democrata ou Republicana, antes de ser conspurcada pelo populismo mais brega de Trump e da degradação galopante das suas polarizações. Gostaria de ver o Bruce a juntar-se a um espetáculo de massas para comemorar uma eventual derrota de Trump, mas sei que isso pode ser uma esperança vã, tamanha é a confusão que se depreende das sondagens para a próxima terça-feira. A idade, o tempo, a morte, as raízes alimentam como temas a criatividade de Springsteen e compreendemos no fim que aquele álbum só poderia ter sido gravado naquela atmosfera, porque aquele ambiente criativo é genuíno e já faz parte da identidade do próprio BOSS.

E os versos finais:

(…)

In my letter to you

I took all my fears and doubts

In my letter to you

All the hard things I found out

In my letter to you

All that I found true

And I sent it in my letter to you

I sent it in my letter to you”.

Nota final:

Saúdo o meu colega de blogue pela liberdade deste novo tempo e hesito em congratular-me com o facto de não ter ficado associado a uma solução de governação para as CCDR que ambos criticámos de cima a baixo ou em me penalizar porque a sua presença na Presidência seria seguramente um travão a possíveis desvios que a perversidade da solução pode gerar. De qualquer modo, a liberdade para a crítica é um bem público e até pode ser que surja deste material de muitos anos material para uma reflexão conjunta mais estruturada sobre este país que nos tortura e encanta, por mais paradoxal que isso possa parecer. Pela minha parte e ainda influenciado pelo tom profundo do álbum de Bruce, é tempo de deitar cá fora ideias e combater o ruído que só atrapalha.

Abraço.

O BENFICA DE RASPÃO

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt) 

Primeiro dia de inteira “liberdade” pessoal; uma sensação mista de algum vazio e perda (sobretudo de gente boa e decente) e muito alívio e descontenção (sobretudo em relação aos quotidianos político-administrativos infernais em que este País se especializou). Num dia como este, ademais em confinamento concelhio, só podia ver-me conduzido à alienação de aqui me referir às eleições no Sport Lisboa e Benfica. Reconhecendo embora a significativa participação observada (o que talvez corresponda, essencialmente, ao facto de pela primeira vez ter havido uma alternativa credível e passível de abanar Luís Filipe Vieira, encabeçada por João Noronha Lopes e apoiada por figuras públicas de destaque) e a vitória do candidato do “regime” (com algumas deserções estratégicas ou táticas, ver-se-á, assim como a dimensão e concatenação dos respetivos impactos), quero apenas fixar-me no ridículo resultado obtido pelo titular de uma terceira lista em presença, Rui Gomes da Silva (RGS) de seu nome e um dos belos cromos da bola que por cá pululam – RGS largou a direção de Vieira para dele se autonomizar e o tentar enfrentar, passou anos a charlatanear por esses nossos media fora (com dominante em presenças televisivas permanentes), ameaçou os de dentro com vitórias arrasadoras que acabariam com “esta vergonha” e tudo o restante com uma soberba de provocatório conhecimento que parecia imbatível, para tudo desembocar agora nos míseros e envergonhantes 1,64% dos votos dos benfiquistas que lhe tocaram na contenda eleitoral; apesar deste quadro confrangedor, que levaria um mortal normal a optar por um confinamento definitivo, quase que aposto que vamos tê-lo proximamente a encher os nossos espaços públicos de requentados mas sempre doutorais palpites.


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

MUDAR PARA FICAR TUDO NA MESMA?

 

                    (Capa do The Core Team - The Economy, University of Oxford)

(Já há tempos que não reflito neste espaço sobre os rumos da economia e do seu ensino. Essa preocupação aplica-se sobretudo a tempos de perturbação como os de hoje. Um exercício relevante consiste em procurar na memória tempos de reivindicação de mudança nos rumos do pensamento e do ensino da economia e verificar o que aconteceu. Os meus registos conduziram-me a um editorial do Financial Times view datada de 25 de setembro de 2014 que se aplica como uma luva aos tempos indeterminados de hoje. Seis anos passaram e ...)

O título do Financial Times (link aqui) era então o de “A economia precisa de refletir um mundo pós-crise – a ciência sombria (dismal), para continuar a ser relevante precisa de se basear na realidade”.

Vou ter de citar e a citação é longa (desculpem qualquer coisinha pela qualidade da tradução):

Quando a economia global bateu no fundo em 2008, a lista de culpados era longa, integrando reguladores desatentos, banqueiros gananciosos e devedores irresponsáveis no mercado do subprime. Agora, a ciência sombria está ela própria no banco dos réus, mergulhada em buscas profundas das razões pelas quais os economistas falharam na previsão da crise financeira. Um dos produtos deste debate é que os estudantes de economia estão a exigir a reforma de um curriculum que eles pensam refletir a tensão egoísta do capitalismo e que é dominado pela matemática abstrata. Parece que os estudantes conseguirão o que pretendem. Um novo curriculum, concebido pela Universidade de Oxford, está a ser ensaiado. São boas notícias. Os defensores do status quo foram empurrados para trás, abrindo caminho a um campo de influência rico de pensadores económicos heterodoxos. Se investigarem fundo encontrarão muitos tratados académicos sobre falências de bancos, ciclos de crédito instáveis e mercados irracionais. Que as pessoas são egoístas e que os negócios perseguem o lucro não é um problema da economia mas da natureza humana. Prever rigorosamente o futuro é um teste irrealista para qualquer disciplina académica, particularmente de uma que abrange interações humanas ilimitadas. Mas o ponto fundamental colocado pelos críticos é correto. Para um assunto tão envolvido com o estudo do comportamento mundano, há demasiada abstração atemporal e demasiado pouco escrutínio dos eventos do mundo real. O curso típico de economia começa com o estudo de como agentes racionais interagem nos mercados sem fricções, gerando um resultado que é o melhor para todos. Só mais tarde cobre essas imperfeições e perversidades que caracterizam o comportamento económico real, tais como as práticas anti-concorrência ou os mercados financeiros instáveis. À medida que os estudantes avançam, regista-se um enviesamento crescente a favor da elegância matemática. Quando o mais impuro mundo real se intromete, limita-se a colocar a questão: isso está muito bem na prática mas como é que se passa na teoria? Este enviesamento teórico levou a que a disciplina resistisse aos desafios num tempo crucial. Quando em 2005 Raghuram Rajan, agora Governador do Banco Central da Índia, nos advertiu que a inovação financeira se tinha transformado numa fonte de instabilidade, esse artigo foi despachado como sendo “ligeiramente Ludita”. O seu apelo a uma supervisão bancária mais prudencial foi ignorado. Felizmente, os passos necessários para trazer o ensino da economia ao mundo real não exigem a invenção de nada de novo ou exótico. O plano de estudos deve integrar a história económica e prestar mais atenção a pensadores não ortodoxos como Joseph Schumpeter, Friedrich Hayek e – sim – mesmo Karl Marx. As Faculdades precisam de recuperar laços com outros domínios como a psicologia e a antropologia, cujas perspetivas podem explicar fenómenos que a economia não pode. Os professores de economia devem fazer do estudo da concorrência imperfeita – e de como as pessoas atuam em condições de incerteza – o ponto de partida dos cursos, e não remeter isso para depois. Os modelos matemáticos podem manter o seu lugar, enquanto os seus resultados não forem considerados de modo demasiado literal. Mas muitos dos modelos usados nos bancos centrais ignoraram até agora o setor financeiro como fonte de instabilidade. Remediar este facto trará ainda mais complexidade. As matemáticas serão mais difíceis. No após crise financeira a popularidade dos cursos de economia aumentou. Tendo visto a economia global cair do precipício, os novos estudantes não toleram aulas anódinas sobre a sabedoria dos mercados. Exigem mais pluralismo e humildade num assunto que até agora sobreavaliou o purismo e a certeza. A economia não deve ser ensinada como se a sua prioridade fosse a descoberta de leis atemporais. Os que se destacam na disciplina devem recordar que no seu coração a disciplina tem o comportamento humano, com todas as complicações e desordens que isso implica.”

Vinda do Financial Times esta mensagem adquire outro significado. É uma daquelas críticas que gosto imenso de trabalhar, as críticas vindas de dentro. Mas ela tem seis anos. Depois de uma perturbação, a crise de 2008, veio uma outra de muito maiores proporções, gerada agora pela interação ruinosa entre uma crise sanitária e uma crise económica, devastadora no plano social. Seis anos não parecem ter sido suficientes para transformar as coisas, embora verdadeiros dogmas que se aguentaram durante anos e anos tenham a vindo a cair com estrondo. Recordo apenas três para nos focarmos. O dogma de que a política monetária tudo resolvia caiu com estrondo, compreendendo hoje que tinham enterrado precocemente as ideias de Keynes e a política fiscal. A pandemia cavou ainda mais essa convicção. Segundo dogma, o espectro inflacionista tão presente (ou inculcado por interessados?) na sensibilidade alemã não resiste a carradas de liquidez vertidas na economia e mesmo as expectativas quanto à inflação de longo prazo continuam mortiças. Terceiro dogma, a ideia de que o aumento do salário mínimo gera deterministicamente desemprego começa a ser abalado. David Card e Alan Krueger (funestamente desaparecido de entre nós) trouxeram-nos evidências de que assunto tão sensível na economia americana reunia evidências contrárias.

É verdade que temos um novo programa de economia a emergir com o The Core Team, apadrinhado por Oxford (link aqui). Mas, como costumo relembrar, nos cursos de MBA os alunos que tiveram introduções à economia e se exercitam nesses cursos continuam a sentir a esquizofrenia dos dois mundos. Introduziram-se na economia através de um mundo sem imperfeições e onde a figura do empresário está ausente, substituído pela matemática da otimização. Chegam ao universo de casos e de imperfeições estudados nos MBA e sentem que o que lhes foi ensinado foi uma perda de tempo.

Continuarão por muito tempo indiferentes?