(Estes tempos pandémicos são perturbadores. Convicções que caem uma após outra, novas interrogações que surgem e sobretudo uma diferente conceção do tempo que emerge. Este vosso amigo que tem um ADN marcadamente incremental e nada disruptivo começa a concluir que o incrementalismo do Governo na abordagem à pandemia nos pode levar ao colapso. Venha o disruptivo.)
O tema dos traços mais profundos, agora diz-se estruturantes, dos Portugueses e do seu comportamento como Povo é uma matéria que deixa alguns sociólogos mais rigorosamente assanhados furibundos. O uso de categorias insuscetíveis de caracterização por evidência empírica cientificamente produzida é perigoso e pode conduzir a um mero registo de opinião circunstancial e não de análise rigorosa. Claro que existem métodos indiretos de captar evidências nesse domínio. A literatura, as regularidades da história, a cultura popular são alguns desses registos possíveis. O Bruno Monteiro e o Nuno Domingos organizaram para a DERIVA em 2015 uma pequena antologia de textos publicados no Le Monde Diplomatique (edição em português) que reúne alguns contributos de Portugueses para a caracterização da entidade histórica e sociológica dos Portugueses como País e Povo. A dificuldade e os riscos de banalização que o tema suscita explicam em meu entender que só alguns dos nossos Grandes, por exemplo Eduardo Lourenço (tantas vezes aqui citado), Miguel Real (Nova Teoria do Sebastianismo) e José Gil (O Medo de Existir) tenham desenvolvido incursões acabadas e documentadas sobre o tema, só ao alcance de gente com uma imensa cultura. Nunca me esqueci da referência de Miguel Unamuno aos Portugueses como invertebrados e dos problemas que ela me suscitou enquanto categoria de caracterização de uma identidade.
Esta entrada para falar do incrementalismo do Governo na abordagem à pandemia, pode parecer estranha, até porque dado o fascínio da entrada corre-se o risco de nunca mais dela sair esquecendo a questão para a qual foi invocada, a tragédia da nossa posição atual.
O que eu quero dizer é que talvez o Governo (ou quem o assessora) tivesse andado bem em ler alguns dos registos atrás mencionados sobre os traços mais profundos dos Portugueses para compreender e antecipar reações dos mesmos aos tipos de confinamento que têm sido ensaiados. Bem podem António Costa e o presidente Marcelo dizerem aos Portugueses que se têm de fixar nas regras de proibição e não nas exceções. Alguém desconhece que somos maus em conceber modelos de organização eficientes e bons na resolução dos problemas com o improviso da criatividade, popularmente designada de “desenrascanço”? Não é isso que nos mostra o trabalhador médio português de qualificação baixa ou média operando comparativamente cá ou lá fora em organizações mais coerentes e consistentes? Não é essa questão organizacional que adicionada à baixa qualificação explica os problemas da gestão em Portugal?
Três dias de novo confinamento, a pretender ser rigoroso não o sendo, bastaram para evidenciar o potencial inventivo, neste caso suicida, dos Portugueses, do qual o modelo de venda ao postigo é o melhor exemplo. Alguém imaginaria outro lugar do mundo em que a minudência das vendas ao postigo se transformasse num ícone do confinamento imperfeito?
Os excessos de aproveitamento das exceções à mobilidade, com massas de gente a passear nas frentes ribeirinhas e marítimas, podem também ser entendidas como um falacioso aproveitamento deturpado da possibilidade de exercício físico saudável. Mas aqui o efeito perverso de situações contraditórias de mensagem e de concretização não podem ser esquecidos. No domingo, ao mesmo tempo que muitos exploravam para além do razoável a oportunidade de um desentorpecimento físico, muitos como eu, por exemplo, estavam cerca de hora e meia numa fila, embora bem organizada e espaçada e sem azedumes, diga-se, para cumprir o seu dever cívico de votos nas presidenciais, através do voto antecipado.
Dizem os especialistas, não sei bem com que fundamentos, que a tendência para o laxismo nos comportamentos é comum em processos de cansaço pandémico como o que vivemos. Ora, se é conhecido esse síndrome, então as medidas propostas não podem deixar de a prever, por mensagem explícita ou por vigilância mais rigorosa.
A questão das vendas ao postigo pode constituir o lado mais mediático das reações criativas aos confinamentos pontuais e incrementais. Mas, deixemo-nos de falsos pruridos, a questão fundamental é o não encerramento das Escolas, pelo menos do ensino secundário e universitário, este último presentemente em período de avaliação e que poderia perfeitamente adiar num mês o início do segundo semestre. Já escrevi sobre a matéria em post anterior. O Governo insiste em defender a não concretização dos efeitos perversos e desiguais do ensino à distância, admitindo talvez a sua incapacidade de, atempadamente, ter distribuído computadores pelos alunos mais desfavorecidos e, futuramente, de organizar processos nas Escolas de recuperação de atrasos de aprendizagem. Estaria no seu direito e uma parte da opinião pública mais qualificada e reconhece-o e até o aplaude. Mas, objetivamente, fá-lo com o risco de estar a contribuir para o agravamento pandémico quando pelo confinamento o pretende controlar e sem publicar informação rigorosa sobre a incidência da pandemia nas escolas. Por outras palavras, adiando talvez uma decisão inevitável, a de fechar as escolas mais tarde. Mas fechar mais tarde significa ter de encerrar o ensino presencial mais tempo e com isso agravar os efeitos de desigualdade e de perda de aprendizagem que quer combater. Não gosto habitualmente de argumentar esgrimindo números catastróficos. Mas neste caso parece-me que o Professor Manuel Carmo Gomes tem razão em denunciar a perversidade do incrementalismo.
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