domingo, 3 de janeiro de 2021

RELENDO SCHUMPETER

 


(Não me imaginaria nestes dias de paragem de início de 2021 a reler Schumpeter, sobretudo quando o impulso veio de uma crónica de Xosé Luís Barreiro Rivas na Voz de Galicia (link aqui). Uma vez mais confirmo a minha ideia já antiga de que uma bússola que nos oriente para ler o que vale a pena é uma preciosidade, sobretudo nos tempos do digital.)

            Por repetidas vezes neste blogue tenho insistido sobre o interesse das crónicas do cientista político galego e Professor na Universidade de Santiago de Compostela. O controverso cronista galego tem uma cultura das antigas em termos de ciência política, que combina magistralmente com uma erudita cultura religiosa (tempos de frequência do seminário) e popular, o que dá ao teor viperino de algumas das suas crónicas um tom inimitável de referências e contextos. Não é fácil encontrar cronistas que combinem sabedoria imensa naqueles três domínios, daí ser leitor assíduo. Alguns dos meus amigos galegos mais à esquerda não podem com o homem, mas cá para mim são coisas de política local que não me interessam por aí além e que se devem ao seu percurso político sinuoso e peculiar do agora Professor de Ciência Política na Universidade de Santiago de Compostela.

Não deixou ainda assim de me espantar que, numa crónica de fim de ano sobre a democracia e o Brexit, surgisse a invocação de uma das mais apaixonantes obras de Schumpeter e como é sábia essa invocação.

Li o Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942, com edições sucessivas em 1947 e 1950) já há muito tempo quando preparava matéria de base para uma disciplina sobre Teoria dos Ciclos Económicos (que exige a leitura do monstro dos Business Cycles mas não só) e depois para preparar a nova cadeira de Economia da Inovação e do Conhecimento. Tinha na altura o especial privilégio de ter na equipa um grande especialista de Schumpeter, o Professor Mário Graça Moura, com a particularidade de ser dos poucos que leu parte da obra de Schumpeter no original em alemão. 

O CSD é uma obra fascinante, sobretudo pela capacidade de Schumpeter ler na época as grandes transformações estruturais do capitalismo (ele que teorizou como ninguém a sua relação indissociável entre inovação e entrepreneurship) e concluir que a sua projeção futura poderia determinar a destruição do próprio capitalismo. Por várias vezes na obra e expressamente na sua última alocução à Conferência anual (a Meca dos economistas) da American Economic Association[1]), (link aqui) realizada poucos dias antes de morrer, Schumpeter refere que não é e nunca foi devoto ou apologista do socialismo. Por isso, a sua tese central é construída apenas em função do que ele afirmava serem mudanças estruturais do capitalismo que o conduziriam à sua destruição e substituição possível por um socialismo centralizado. Não sendo o tema central desta crónica, as mudanças essenciais de que fala Schumpeter respeitam à erosão da base social que deveria gerar a renovação do entrepreneurship nas sociedades capitalistas. Fiel à sua conceção da força motora insubstituível da dinâmica capitalista, a indissociável ligação entrepreneurship-inovação, Schumpeter via nuvens negras no futuro do capitalismo e, por isso, considerava que uma coordenação centralizada (socialista e com controlo público dos meios de produção) poderia perfeitamente e em certas condições em ambiente de democracia política substituir o capitalismo.

Para analisar as relações entre capitalismo e socialismo, Schumpeter dedica no monumento analítico e histórico que é a quarta parte do CSD a sua atenção à análise entre socialismo e democracia. É nessa análise que Schumpeter nos proporciona uma das mais consistentes leituras e confronto entre o que ele designa de doutrina clássica da democracia, na qual estão em jogo o bem comum e a vontade do povo e o chamado método democrático.

Na primeira, em que “a vontade do povo é o produto e não a força motora da ação política”, reina o chamado utilitarismo que segundo Schumpeter não é mais do que a extensão para o plano político de uma crença de alcance religioso. Incompatível com o funcionamento concreto das sociedades avançadas mais complexas, a doutrina clássica da democracia e a sua sobrevivência no discurso político apesar da sua incompatibilidade com as sociedades modernas não seriam mais do que um sucedâneo da religiosidade perdida pelos intelectuais.

Em contrapartida, a definição do método democrático proposta por Schumpeter é clara e transparente: “o método democrático é o sistema institucional para a adoção de decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de governar sobre essas decisões como resultado de uma luta concorrencial centrada nos votos do povo”. Ou seja, aplicando esta teoria alternativa da democracia de Schumpeter ao Brexit compreende-se que, ao contrário da ideia romântica e tão propagada em Portugal pelos defensores do carácter exemplar da vontade do povo britânico de sair da União Europeia, na prática o que os ingleses concretizaram foi antes depositar essa decisão nas mãos de um conjunto de políticos que mostraram não só não saber como desenvencilhar-se a contento de tal responsabilidade como também não ter qualquer perspetiva sobre os riscos que daí advirão seja para as vidas dos britânicos, seja para o próprio projeto europeu. Tenho cada vez menos dúvidas de que o BREXIT vai representar um caso típico de projeto “lose-lose” (questão a que voltarei em próximos posts. E aplicando os critérios de salvaguarda do método democrático de Schumpeter não consta que tenha resultado de uma decisão anti ou não democrática.

A releitura da quarta parte do CSD encheu-me estes dias. Quase oitenta anos depois daquela obra ter sido escrita, a sua grandiosidade permanece intacta.

Imagino o cenário da grande conferência anual da American Economic Association em janeiro de 1949 quando Schumpeter, fazendo eco da sua obra, fez a sua intervenção sobre “The march into socialism”, ao referir: “Não advogo o socialismo. Nem tenho qualquer intenção de discutir a sua natureza desejável ou indesejável, o que quer que isso possa significar. Mais importante é, todavia, tornar bastante claro que não faço qualquer profecia ou previsão. Qualquer predição é uma profecia não científica que tenta fazer mais do que diagnosticar tendências observáveis e avaliar que resultados podem gerar, se essas tendências evoluírem segundo a sua lógica”.

Daí até aos nossos dias, talvez ninguém na sociedade americana tenha podido usar a palavra socialismo com tanta fundamentação como a que Schumpeter tinha em seu favor com a grandeza de uma obra como o Capitalismo, Socialismo e Democracia.



[1] O artigo que é publicado na American Economic Review de maio de 1950 (The march into socialism), que reproduz a intervenção de Schumpeter na Conferência feita a partir de notas pessoais, só em parte foi redigida pelo próprio Schumpeter. A parte final, quatro ou cinco parágrafos finais, o economista vienense já a não conseguiu acabar, sendo concluída com a colaboração da mulher que reuniu notas complementares entre o seu espólio.

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