quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O VALOR DA COMUNICAÇÃO DA CIÊNCIA NA PANDEMIA

 


(Mais uma sessão sobre a situação epidemiológica COVID-19 em Portugal no INFARMED e mais uma oportunidade para avaliar como a comunicação científica está a chegar ao cidadão. A diversidade de contributos de especialistas para a sessão facilita pelo confronto essa avaliação e como sempre acontece nestas coisas há sempre algo de dececionante à nossa espera …)

            A sessão de 12 de janeiro de 2021 (link aqui) das chamadas reuniões do INFARMED tinha tudo para ocupar o palco mediático. Afinal, ela precedia a discussão na Assembleia da República do decreto presidencial sobre o novo estado de emergência até 30 de janeiro e precedia a reunião do Conselho de Ministros de hoje que dará origem às medidas para um novo confinamento que se sabe terá o horizonte de um mês. No momento em que escrevo não é ainda conhecida a comunicação dos resultados da reunião do Conselho de Ministros, mas isso não é o importante para os objetivos do post de hoje. O que me interessa avaliar é o modelo de comunicação que ressalta destes momentos tão esperados pela comunidade, não apenas pela classe política. O que também é facilitado pela regularidade das intervenções. Não temos, regra geral, presenças esporádicas. Temos presenças que se vão repetindo, o que dá para captar traços relativamente invariantes e que são próprios de cada um dos especialistas.

O modelo que tem predominado é o de apresentações bastante contidas com explicitação dos resultados encontrados e o que me agrada especialmente é o que poderia chamar de ética da apresentação. As intervenções chamam a atenção para as limitações e pressupostos dos dados encontrados. Quase sempre os especialistas têm resistido a extrapolações dos seus dados sem rede, domínio nebuloso em que as convicções e opinião dos autores capturam o valor e consistência dos dados encontrados. Esse equilíbrio e sentido de posicionamento são fundamentais para evitar que especialistas e cientistas se armem em políticos ocultos, deixando a semente para depois rejeitar a paternidade e atribuir essa responsabilidade à decisão política. A grande generalidade dos apresentadores na sessão tem dado mostras desse equilíbrio e, ao contrário do que muito boa gente pensa, isso não significa falta de sensibilidade ou cegueira numérica. É tão só uma questão de bom senso e de ética e da rigorosa perceção de qual deve ser a relação entre ciência e política, respeito mútuo e pela autonomia de cada um. É o caso, por exemplo, do Professor Manuel Carmo Gomes, tanto mais apreciável quanto se trata de uma personalidade com acesso relativamente fácil aos meios de comunicação.

Não ficaria de bem comigo próprio se não fizesse aqui referência a uma exceção nesse panorama. E não ficaria de bem comigo próprio sobretudo porque se trata de uma personalidade universitária da qual tenho as melhores referências e respeito pela sua atividade à frente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, o Professor Henrique Barros.

A intervenção do Professor Henrique Barros na sessão de ontem é ilustrativa da minha deceção. Ao contrário dos participantes atrás comentados que optam, regra geral, por apresentar uma única base de investigação, que vão adaptando em função das sucessivas sessões do Infarmed e da evolução da situação epidemiológica, a intervenção de Henrique Barros mistura referências a estudos diversos, nem sempre com a completa explicitação das respetivas condições, pressupostos e limitações. Assim, na sua intervenção de ontem, Henrique Barros inclui resultados de estudos em curso como o importante estudo de seguimento de cerca de 2.000 doentes no Hospital de S. João, que constitui o material mais valioso, mas não se ficou por aí. Voltou a insistir num estudo de caso sobre estudantes do ensino superior, que não se percebe bem se extensivo apenas à região de Lisboa e Vale do Tejo e que seguramente foi realizado num momento que não tem nada rigorosamente que ver com a situação pandémica em que a sessão de ontem foi realizada. E não contente com isso falou de um estudo que ninguém conhece sobre o qual disse não poder apresentar ainda resultados. Tudo isto para forçar a sua opinião conhecida, imagino que muito apreciada pelos senhores Reitores das Universidades deste país, de que os estudantes do ensino superior não são super-condutores de contágio e que por isso devem continuar abertas e em regime presencial.

Se a referência ao seguimento de 2.000 doentes COVID no Hospital de S. João me parece matéria séria e que justifica as mensagens ontem endereçadas de obrigatoriedade da atenção ao follow-up dos infetados pelo sistema público, já o reporte para os estudos do passado e a invocação do estudo futuro sobre o qual não se apresentam resultados não me parece boa prática. Numa sessão com o alcance mediático como a do INFARMED, a ética da comunicação tem de ser irrepreensível. Todos os interventores têm direito a expressar a sua opinião. Mas numa sessão daquela natureza é de apresentação de resultados que se trata e não de opiniões. Por isso, um estudo de caso, por metodologicamente mais rico que ele se apresente, só no quadro de uma abordagem multimétodo é que deve ter cidadania explicativa. Ainda por cima um estudo de caso que o público não conhece e que não foi sujeito ao confronto de dados que qualquer exercício científico exige. Um estudo de caso que já na sessão anterior do INFARMED deu origem a declarações precipitadas do primeiro-Ministro e do Presidente da República. E fazer referência na intervenção a um estudo do qual não se pode apresentar resultados é a cereja no bolo das más práticas, para ser brando na sua classificação. E a questão central deve ser esta: há ou não algum estudo sério sobre o comportamento da pandemia nas Universidades portuguesas? Está alguma das Universidades a monitorizar a situação e a testar regularmente estudantes, docentes e funcionários? Não os conheço. Podem existir? Sim, podem, mas deveriam ser públicos. Se esse conhecimento não existir, é a prudência que deve dominar a avaliação de situação.

Está a comunidade universitária farta desta anormalidade? Imagino que sim, como estamos todos, qualquer que seja o nosso lugar na sociedade. Mas por favor não belisquem ou ofusquem a ética da investigação para massajar o ego de responsáveis políticos e administrativos.

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