sábado, 9 de janeiro de 2021

MAS QUE COMEÇO DE ANO!

 

(As Musas Inquietantes, 1916 - Giorgio de Chirico, pintura metafísica a caminho do surrealismo)

(À hora que escrevo, com a noite já caída sobre a zona ribeirinha do Minho e sobre o Monte de Santa Tecla, onde algumas, poucas luzes, se destacam no cume fronteiriço a Caminha, reina uma calma inquietante. Sobretudo porque ela não está em conformidade com a agitação deste início de 2021, em termos políticos, climáticos e pandémicos.)

            Ainda não recuperei totalmente do abalo americano com a invasão do Capitólio. Hoje, enquanto aproveitava uns raios de sol para amenizar o tiritar na praça de manhã, lia o New York Times (edição internacional) em papel de sexta feira para tentar compreender melhor, a partir de lá e de dentro, o que poderá significar o que aconteceu para os americanos. Sinceramente, não sei distinguir entre o impacto causado pela insurreição, no tempo e condições em que se produziu e o que ela representa de ameaça futura e de novas tendências na polarização política dos nossos dias. É como se estivéssemos perante um fogo lento, que se vai simultaneamente consumindo e reavivando e que irrompe brusca e violentamente em certos momentos quando encontra o instigador-combustível mais adequado. Trump é o instigador certo no momento certo. Mas se pensarmos que a matéria para combustão está lá, que não desapareceu, antes se vai transformando, não interessa se Trump está ou não morto politicamente. Se não o estiver, outro instigador-combustível entrará em cena.

Nicholas Kristof, um dos mais prestigiados jornalistas do NYT, dava conta do meta-ataque que esteve ali aos olhos do mundo, ataque a um edifício simbólico da democracia americana, mas também ataque à Constituição, ao sistema eleitoral, a todo o processo democrático americano. E Kristoff não podia conter o espanto de jornalista que viveu e acompanhou inúmeros golpes de estado por todo o mundo mais ou menos pouco recomendável, reconhecendo que nunca esperaria ter assistido a esse fenómeno no coração de Washington, humilhando os EUA perante todos.

A velocidade a que o acontecimento está a dinamitar o Partido Republicano é impressionante, neste momento sem rei nem roque, abrindo para todos os cenários possíveis, que podem ir do defensivo mais cobarde e oportunista até ao de clarificação e regresso às raízes ideológicas do partido. A movimentação de ratos, ratinhos e ratões é de pasmar, anunciando o que de mais asqueroso pode existir na política, sendo agora visível que a questão central no futuro será a de perceber se Trump fica impune ou se terá de se submeter à justiça americana. Regra geral, nos golpes de estado falhados ou comprometidos que Kristoff seguiu pelo mundo, os autores e instigadores acabam atrás das grades ou pelo menos no exílio, sendo esta última possibilidade frequentemente consequência de compromissos ocultos. Não sabemos se a horda de insurreição esperaria outros apoios, tamanho foi o à vontade com que se passeou pelos interiores da democracia feita edifício.

Estamos num tempo de banalização da palavra e neste caso o patriotismo de Trump que tanto atraiu saudosos e deserdados é o melhor exemplo dessa vacuidade em que as palavras se transformaram na efemeridade comunicacional de hoje. Por cá, como diz o Pacheco Pereira, os trumpinhos e os trumpões estão calados que nem ratos. Estou com curiosidade o que os politólogos de direita mais assanhada estarão a ruminar para se sairem airosamente desta. Há sempre amigos e referências indesejáveis e a arte de bem descartar no tempo certo é uma arte secular.

Mas também em termos climáticos 2021 começa com a revelação de tendências que são nossas conhecidas já há bastante tempo. A paralisação da Espanha, ou pelo menos de parte dela, enquanto que, por exemplo em Málaga, fenómenos de inundações provocam outro tipo de estragos. Estamos no mundo dos fenómenos extremos, claro que é inverno e tempo de neve, mas dizem os climatologistas que há cinquenta anos que não se via tanta precipitação de neve e consequências tão danosas para a mobilidade intra e inter-urbana. O plano climático é outro exemplo similar ao da combustão política. As tendências estão aí, mas como os acontecimentos disruptivos se sucedem com alguma irregularidade dá tempo para nos intervalos regressar à modorro do negacionismo ou da inação.

Finalmente, a questão pandémica regressa e sempre para pior. Já percebemos que a reiterada sequência confinar-abrandar, confinar-abrandar pode transformar-se em algo de recorrente com consequências gravosas para a confiança e sobretudo para a capacidade de resposta dos sistemas de saúde até que a vacinação produza resultados positivos em termos de redução dos tempos de contágio. Tudo isto ainda sem erradicarmos a incerteza. Dizia-me há dias um médico do Hospital de Santo António que alguns colegas infetados em março de 2020 fizeram recentemente testes à presença de anticorpos e que tais resultados não registaram já a presença desses anticorpos. Pode ser um caso pontual que terá a sua explicação, mas a verdade é que ainda não dispomos de resultados serológicos suficientemente abrangentes e compreensivos para percebermos o pós-infeção curada.

Contrariamente ao que seria desejável, numa continuidade persistente entre o pensamento da ciência e a decisão política, lá teremos no dia 12, terça-feira, os cientistas especializados deste país submetidos a uma pressão do arco da velha, sabendo que do tom científico da reunião resultará uma decisão política com sérios impactos nas condições de vida dos portugueses. Lá regressaremos ao discurso das consequências económicas, sociais, psicológicas, sei lá o que mais, do confinamento, sem perceber bem o que propõem para evitar esse confinamento e os seus conhecidos inconvenientes. O problema repete-se. Mas será difícil perceber que, desculpem usar o chavão da oferta e da procura de serviços, é impossível resolver a questão da oferta (neste caso o apetrechamento do sistema hospitalar) sem intervir, refreando a procura dos seus serviços (o número de contágios e a sua gravidade)? E já agora alguém já perguntou às pessoas se teriam preferido um natal mais atípico a um janeiro problemático e possivelmente trágico?

Nota final:

O Bastonário da Ordem dos Médicos veio a público clamar o seu mais espanto do que indignação pelo topete do PSD o incluir numa inquirição sobre possíveis candidatos à Câmara Municipal do Porto. Bem sei que o PSD está neste momento a sofrer de uma incontinência política que nem as melhores fraldas de proteção conseguem mitigar. Mas recomendaria ao Bastonário que, em vez de se assumir como Virgem Ofendida, fizesse uma simples introspeção política: será que o meu comportamento e postura induziram em erro os incontinentes do PSD? Talvez encontrasse uma resposta e a tomasse como ensinamento para futuro.

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