(Deste fim de semana de hibernação na atmosfera húmida e angustiante destes tempos destaco sobretudo dois grandes artigos, a Pluma Caprichosa de Clara Ferreira Alves na revista do Expresso e A Democracia e os Mortos de José Gil no P2 do Público de domingo. Aparentemente distantes um do outro, há fios e desafios que os unem e relacionam e é sobre isso que quero escrever, embora receie não estar à altura da tarefa dada a excelência da origem. Desculpas pela ousadia.)
Em vários posts anteriores tenho manifestado a minha preocupação quanto à vertiginosa e perigosa recomposição da direita a que estamos a assistir e a que as eleições presidenciais vieram acrescentar uma nova força de aceleração. Não é que a esquerda não esteja ela também em recomposição e que as eleições presidenciais não tenham também provocado mossa nesse campo. Oxalá me engane mas António Costa pode amargamente arrepender-se de uns tempos atrás ter matado à nascença qualquer possibilidade de cooperação política com o PSD. Poderia tê-lo feito sem qualquer problema de contradição com a experiência da geringonça. O PS tem de origem essa capacidade de procura das alianças parlamentares à altura dos desafios de cada tempo. Tem por um lado sensibilidade às causas sociais da esquerda e, por outro, amplitude programática suficiente para cooperar com a social-democracia e com a direita social mais moderada. Nunca como nos tempos de hoje e no que vai seguir-se ao controlo da pandemia pelo avanço da vacinação (por mais escolhos que ela vá enfrentar nos próximos tempos) foi necessária essa capacidade de entendimento político sem destruir elementos fundacionais. Claro que as capacidades de entendimento político não dependem apenas dos ideários políticos. Dependem cada vez mais da própria qualidade dos personagens políticos e essa tem vindo, em certos campos, a degradar-se de forma despudorada (basta olhar para a liderança do CDS e para a entourage imediata de Rui Rio, dando o benefício da dúvida a ele próprio, para o compreender), com reflexos penosos e conhecidos.
A crónica de CFA na Pluma Caprichosa centra-se sobretudo no fio da navalha em que o PSD hoje se encontra, já que é discutível que o CDS tenha ainda margem de revitalização, que teria de passar pela reentrada no ativo de personagens fortes como António Lobo Xavier, Adolfo Mesquita Nunes e outros e pela aproximação com a Iniciativa Liberal, benéfica em meu entender para ambas as formações políticas.
CFA tem razão quando salienta que o Chega permitiu que os fatos com cheiro a naftalina da direita mais tramontana saíssem finalmente do armário (algo de muito similar ao que aconteceu em Espanha com a emergência do VOX a partir das faixas do PP que esperaram pacientemente a oportunidade para se manifestarem) e irrompessem com algum estrondo na votação presidencial. Mas também está certa quando refere que “o Chega será o que o PSD o deixar ser”. E é sobretudo este último ponto que coloca o PSD no fio da navalha. O pragmatismo do Deve e Haver de Rio impede-o de compreender a mais largo prazo as consequências da abertura dada ao Chega nos Açores. Os líderes não mudam para além das suas características mais profundas. Ora Rio não tem nuance política para tal. Apressou-se a normalizar uma possível adaptação de Ventura e dos seus seguidores ao quadro democrático.
O fio de navalha a que me refiro resulta sobretudo do pernicioso cômputo de custos e benefícios em que os militantes e apoiantes do PSD mais diretamente dependentes de uma lógica de poder vão estar mergulhados nestes próximos tempos. Para essa gente em que o tempo de afastamento do poder é penoso e incomoda será sempre mais fácil valorar mais a possibilidade de acordos parlamentares e de governação com o Chega do que apostar em recuperar o poder através de uma convergência de forças de centro-direita que estabeleça a linha vermelha de não aproveitar a força emergente do Chega. A primeira das hipóteses tem com ela a evidência de eleitorado votante do PSD que não se reviu na condescendência de Marcelo e migrou para Ventura (parte do que CFA chama deliciosamente de videirinhos do PSD) e a segunda tem contra ela a animosidade anterior de António Costa que será dificilmente esquecida, acaso não haja evidência de mea culpa.
Estou convicto de que Marcelo compreendeu esse perigo na noite das eleições, o que me fez sinceramente atenuar a minha não total satisfação pela decisão de nele votar, tal como o expressei aqui frontalmente noutro post. Como escrevi na altura, nas presidenciais a empatia política sobrepõe-se sempre à minha racionalidade política na escolha em quem votar. O facto da minha empatia política com Marcelo não ser máxima (mesmo assim superior em relação à que Ana Gomes me suscita) não me impede de reconhecer que os seus 60% representam um ato de lucidez política do eleitorado português. Estou certo que Marcelo compreendeu o cenário que temos pela frente e também a vulnerabilidade do seu PSD, que verdadeiramente já não é o seu.
E aqui entra o fabuloso artigo de José Gil (link aqui). Só um pensador de excelência como José Gil compreenderia como foi simultaneamente simbólica e arrebatadora a cerimónia em que Joe Biden e Kamala Harris homenagearam as vítimas americanas do COVID-19. O tempo vertiginoso da pandemia já mais do que duplicou os números que suscitaram a primeira grande capa do New York Times sobre os 100.000 mortos. Como Gil o assinala, aquela cerimónia recupera magistralmente o ritual da política e sobretudo a capacidade de unir uma América fortemente dividida e fraturada através da espiritualidade da homenagem às vítimas. Saúde e política totalmente fraturadas no tempo de Trump articularam-se naquela singela manifestação simbólica e não é só nos EUA que essa fratura existe. Em muitos dos países em que a situação mais se descontrolou as dimensões da saúde e da política perderam o lastro da articulação, com profundas e penalizadoras consequências para a gestão da pandemia em democracia e para a sobrevivência desta última.
Gil tem razão em afirmar que esse é também o grande desafio que vivemos neste momento em termos de unidade. Encontrar um equilíbrio entre a saúde e a política constitui simultaneamente algo de imperioso para controlar a pandemia e resistir aos perigosos de resvalamento antidemocrático que a própria pandemia pode potenciar. O que é fascinante no pensamento de Gil é o seu tratamento da igualdade e da singularidade que vai buscar ao mais profundo sentido da morte pandémica: “a mesma morte que não discrimina nem valoriza uns em detrimento de outros, afirma a singularidade do defunto e, por reflexo, a do ser vivo que foi antes”.
Daí o parágrafo final de José Gil:
“É nestes dois princípios, de igualdade e de singularidade, que assenta o espírito da democracia. São eles que regem o Estado laico democrático, é deles que decorre a possibilidade do exercício da justiça, e da livre coesão dos indivíduos da comunidade. É a uma certa espiritualidade dos mortos no exercício da vida que a democracia pode ir buscar as forças vitais para o seu funcionamento”.
E esse é o grande desafio para que nos comportemos como um corpo único e não atomizado como certos e ainda felizmente pequenos sinais do processo de vacinação fazem recear o pior.
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