segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

E DE LIBERALISMO, COMO VAMOS?

 

(De regresso ao ninho de Vila Nova de Gaia, em preparação para mais um confinamento para mal das nossas penas, apetece-me falar de liberalismo, estimulado por um excelente artigo de Timothy Garton Ash no Prospect de inverno de 2021. Não é que por cá o ambiente seja estimulante nessa matéria. Prova-o o facto de ter aparecido um candidato nessa área com alguns dedos de testa e os nossos jornalistas parece que acabaram de ganhar um campeonato …)

            Já todos percebemos que a massa liberal cá pelo burgo não se recomenda por aí além. Há várias explicações para essa debilidade. Uma das mais correntes é o enviesamento comum de limitar o pensamento liberal ao liberalismo económico e claro que tal presunção não resiste a um mínimo de contacto com a realidade. Eu prefiro outras explicações. A mais importante das quais é que essa corrente liberal no Portugal de hoje acabou por razões de orfandade acolher os ressentidos com o regime em Portugal, sobretudo com a passagem dos socialistas pelo poder. Temos assim revoltados e deserdados rendidos a esse tipo de pensamento que eles entendem como sendo a única via exequível para destruir o poder socialista. Por esse motivo, estamos perante gente que tem dificuldade em estabelecer linhas de demarcação com a extrema direita, que se estende ao convívio com uma direita social, pelo menos interessada em dar vida ao pensamento social da Igreja. É essencialmente gente amarga que vai envelhecer mal. E nestas coisas o melhor são os exemplos. Rui Ramos, historiador e ensaísta, é regra geral apontado como elemento dessa mui digna estirpe. O nosso intelectual teve sempre dificuldade em situar a sua posição face a Trump e imaginei que ficasse por uns tempos calado até que a poeira caísse e estabilizasse. Mas, através de um tweet de Luís Aguiar Conraria (https://twitter.com/LConraria), apercebi-me de que Rui Ramos terá escrito este monumento, onde poderia ser, no Observador: “Estão chocados com a recusa de Trump em sair graciosamente da Casa Branca? Pois nada se comparará à saída dos socialistas de São Bento, se isso lhes parecer o princípio do fim do seu senhorio em Portugal”. Imagino que tenha sido escrito antes do assalto ao Capitólio.

Já percebem por isso que em meu entender faz sentido discutir o liberalismo mas não com esta gente.

Nesse sentido, o artigo de Timothy Garton Ash no Prospect é uma boa companhia. É inteligente, é lúcido, é decente e não é seguramente um ressabiado. Discute as ideias em função das suas convicções.

Sob pressão à esquerda pela sua dimensão mais intervencionista e estatizante e à direita por diferentes formas de iliberalismo e autoritarismo, o futuro do liberalismo passa segundo Garton Ash por três frentes de convicções: (i) a da defesa dos valores e instituições liberais mais tradicionais, como a liberdade de opinião e pensamento e a rigorosa independência do sistema judicial; (ii) o combate ao exclusivismo do fundamentalismo de mercado em que por exemplo os tristes liberais portugueses se encarniçam e (iii) a necessidade de encontrar uma resposta liberal aos grandes desafios contemporâneos como as alterações climáticas, a pandemia e o crescimento da China.

Nesta formulação, o liberalismo revisitado é uma companhia decente com quem se pode conversar e discutir e defender até causas comuns e até admito que se pode colocar no centro dessa aproximação a defesa até aos limites da liberdade.

Há ainda duas outras matérias que justificam a possibilidade de uma conversa decente, inspirada por diferentes abordagens ao bem comum e à promoção da felicidade do cidadão comum. A primeira Timothy Ash coloca-a em termos exemplares, “Nas décadas mais recentes, o liberalismo mostrou ser demasiado complacente com o poder privado em detrimento do poder público”. Esta sensibilidade do autor britânico é crucial em tempos em que as forças do mercado estão a produzir concentrações que podem minar irremediavelmente a renovação saudável do capitalismo, engendrando plutocracias que se reproduzem endogenamente. A segunda prende-se com a necessidade de melhor compreensão das relações entre identidade e comunidade, muito na linha da polarização entre cosmopolitismo e veneração da diferença no exterior e menor atenção aos problemas das sociedades de proximidade. É um tema central, pois essa matéria foi aprisionada pelos populismos de direita, iliberais e autocráticos, como Trump o demonstrou no seu discurso em várias versões para os deserdados de todos os géneros.

Aqui temos um programa decente de aproximação de ideias em defesa de valores como a liberdade e o respeito pelos outros que, a partir do momento em que é capturado por gente ressabiada e com ódio pleno aos socialistas, rompe qualquer possibilidade de diálogo e aproximação.

Fiquem bem e consumam-se no vosso próprio ódio até se mortificarem de vez.

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