(O confinamento é um bom tempo para ler e meditar o “Aging Thoughtfully” de Martha Nussbaum e Saul Levmore, Oxford University Press, 2017 e 2020. Está a ajudar-me bastante a compreender a minha estranha paciência com toda esta alteração de normalidade.)
Olhando para trás e recordando alguns marcos da minha própria formação e incursão algo anárquico-indisciplinada pela fertilização cruzada da economia com outras disciplinas, a presença da obra desta mulher, Martha Nussbaum, tem uma regularidade deveras impressionante.
(Martha Nussbaum)
Quando comecei os meus estudos de economia do desenvolvimento e mergulhei no conceito de desenvolvimento, largamente inspirado nos meus contactos em Paris com o Professor Jacques Austruy (Paris Assas), bons tempos, uma obra conjunta, THE QUALITY OF LIFE, de Martha Nussbaum e Amartya Sen, deixou-me marcas que ficaram para sempre. Ainda hoje recorro regularmente a alguns desses artigos, em que a filosofia e a economia se combinam virtuosamente para compreender a relevância dos valores e a sua influência no futuro expectado e construído pelos cidadãos.
Uns anos mais tarde, por razões profissionais e focado na estratégia de alguns universidades e institutos politécnicos (hoje temos em mãos o Plano Estratégico da Universidade do Porto que me tem dado mais cabelos brancos), o NOT FOR PROFIT. WHY DEMOCRACY NEEDS THE HUMANITIES (2010) mexeu profundamente com as minhas convicções. Compreendi que a chamada formação integral para deixar de ser meramente retórica ou slogan tinha de repousar numa maior presença das artes e das humanidades na base curricular e que a combinação disciplinar era algo de essencial à capacitação para navegar em temos de obsolescência rápida do conhecimento especializado, tanto quanto a matemática ou o domínio da língua.
Quando ainda na esteira do desenvolvimento e dos tempos do conceito de desenvolvimento humano (ONU), comecei a interessar-me pelo tema das “capabilities” e da capacitação dos atores, o CREATING CAPABILITIES: THE HUMAN DEVELOPMENT APPROACH (2011) voltou a marcar a minha atenção, tal era a coerência da evolução do pensamento de Nussbaum.
Poucos anos mais tarde, António Damásio e Hanna Damásio trouxeram ao debate nacional o tema da interação entre os campos da razão e das emoções, seduziu-me então o POLITICAL EMOTIONS – Why Love Matters for Justice (2013), abrindo novos campos de entendimento da política e da justiça social.
Mais recentemente, quando comecei a reunir leituras para compreender o início das trevas populistas, iliberais e autocráticas, o THE MONARCHY OF FEAR – A PHILOSOPHER LOOKS AT OUR POLITICAL CRISIS (2018) foi determinante para alicerçar o meu entendimento de que não estamos em tempos de divisão de pensamento em torno das minudências à esquerda, mas antes de amplas frentes de defesa de princípios liberais sociais contra o populismo, a pluto e a cleptocracia, a indecência na política, a ganância do mercado, a desigualdade. As Presidenciais nas quais voto hoje antecipadamente poderiam ter sido em meu entender um bom momento para afirmar esses princípios de grandes frentes de defesa contra essas ameaças à democracia. Não o foram e estou claramente com Rui Tavares quando ele nos alerta para que não nos admiremos que as coisas aconteçam. Este é o tempo da defesa dos grandes princípios e não da querela das minudências. É preciso preparar com convicção e solidez o campo da democracia para que depois possamos nele divergir e conflituar sem o risco de o comprometer. Nussbaum sempre presente.
Os tempos do confinamento são tramados para quem envelhece. Não é mais um dia que passa é menos um que nos resta. Mas estranhamente, como o assinalava no meu último post, sinto-me claramente menos impaciente do que muita gente mais nova. O AGING THOUGHTFULLY – Conversations about retirement, romance, wrinkles & Regret (2017), um livro originalíssimo de Martha Nussbaum e Saul Levmore, tem-me ajudado imenso nas minhas introspeções de confinamento, fazendo-me compreender que o envelhecimento é apenas um tempo das nossas vidas, quando temos a sorte como eu de experimentar os diferentes tempos em que ela se decompõe. A estrutura da obra inspira-se em Cícero e nas suas conversas com um homem mais novo e tem o Rei Lear de Shakespeare como história que paira sobre a conversa entre a fisolofia (Nussbaum) e a economia e o direito (Levnore). Por trás e como pano de fundo, seguramente o ambiente criativo da University of Chicago Law School. Pergunto-me: seria isto possível em qualquer Faculdade de Direito em Portugal? Nem por sombras, creio.
Nada melhor do que citar uma parte da introdução:
“Este livro fala de viver pensadamente e seguramente não sobre a morte, seja ela agradável ou não. Envelhecer é ganhar experiência, sabedoria, amar e perder e crescer de modo mais confortável na sua própria pele, embora possa implicar perdas. Envelhecer é muitas outras coisas. Para algumas pessoas, pode significar lamento, preocupação, acumulação e necessidade. Mas pode ser também voluntariado, compreensão, orientação, redescoberta, perdão e com frequência crescente esquecimento. Para os financeiramente mais afortunados, pode significar reforma e legado e, por sua vez, poupança e despesa nos anos precedentes. Muitas destas tendências são também vividas por pessoas que não se pensam elas próprias a envelhecer. Mas esses jovens amigos, parentes e colegas olham muitas vezes os seus mais velhos seja como armazéns de sabedoria, seja como avisos de caminhada. Esta busca, a procura do bem, ou apenas a sabedoria, nas rugas, é pelo menos tão velha como Cícero, cujo trabalho é tão relevante para o nosso mundo em mudança tão rápida como o era há dois mil anos.
Se, ao contrário das outras espécies, aprendemos, registámos e comunicamos abertamente os nossos erros e sucessos, e o fazemos de modo a expandir as fronteiras da experiência humana e melhorando a vida de gerações sucessivas, então poderemos esperar progresso no domínio pessoal. Fizemos progressos na agricultura, na indústria transformadora e na aviação. É menos claro que o tenhamos conseguido em relação à parceria, paternidade e escolha de líderes políticos e talvez isso se deva ao facto dos problemas nesses domínios serem metas que se movem que não são atingidas ao longo do tempo através do progresso científico incremental. O envelhecimento situa-se entre esses desafios científicos e interpessoais. Em média, vivemos e com mais conforto do que os nossos antepassados. Temos mais escolhas e este livro é sobre essas escolhas”.
Espero que a introdução vos tenha seduzido.
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