(A trágica e cada vez mais grave situação pandémica que se vive agora em Portugal ofusca o significado da tomada de posse de Joe Biden e Kamala Harris e da lista de primeiras medidas tomadas após a cerimónia. A decência, o respeito pelos valores da democracia e a sensação de que a América de sempre, com as suas virtualidades e contradições estão de volta. Mas a polarização e os riscos de que ela possa significar fratura irreversível estão aí e esse é o grande desafio da nova administração.)
Trump, filho dos três PPP, saiu pífio, piroso e perigoso. Como sempre, foi tão claro na saída como na entrada e só gente muito distraída e com propensão para se deixar enganar é que não o percebeu. Prometeu voltar e implicitamente não dar tréguas ao próprio Partido Republicano, ameaçando decompô-lo em dois já que parece convencido de que o seu take over hostil sobre o Partido já não tem condições para ter êxito. Resta saber se o seu ego resistirá à procissão habitual nestes cenários dos abandonos, traições e não sei se te conheço pois não tens agora nada para me dar. Mas vai continuar a perturbar o sistema, isto se o próprio sistema não for lesto e preciso a impedi-lo dentro da lei de se apresentar a uma nova corrida presidencial. Uma cisão dos Republicanos, com a formação de um outro partido alicerçado nos valores de chicana trumpista, afastaria não só os Republicanos de uma alternância democrática na Casa Branca, como colocaria a direita fora dela por algum tempo, sobretudo se a decência Democrata persistir.
Mas a polarização da sociedade americana e as chagas que ela provoca estão lá, intocáveis, embora com um novo espírito de esperança no que a nova administração norte-americana possa fazer para a suavizar e erradicar progressivamente, colocando de novo os EUA como parceiro de confiança (de novo na OMS e no Acordo de Paris sobre o clima) e não como amigo alcoviteiro de Israel e da Arábia Saudita.
Como se afirmava ontem com clareza na Circulatura do Quadrado, a emergência, desvarios e derrota de Trump vieram colocar um problema à democracia ocidental, das maiores como nos EUA às mais pequenas como em Portugal e noutros países. Será que o conservadorismo de direita para lograr oferecer uma alternativa aos problemas do desencanto, da desigualdade e da crispação social terá necessariamente que assumir as vestes da indecência política e da intolerância social mais violenta? Muito sinceramente vos digo que esta questão me preocupa tanto como a da atomização da esquerda. A desagregação da direita não é apenas um problema dos outros. É um problema central da democracia e da sua resiliência para os próximos tempos. Sobretudo nos tempos atuais em que ao desencanto, à desigualdade e à crispação veio juntar-se a crise sanitária, económica e social da pandemia, gerando um caldo próximo das tempestades perfeitas.
Acho que Biden fez bem em praticamente ignorar na alocução inicial o filho dos três PPP, colocando-se a um outro nível, superior e orientado para o futuro e para a necessidade de conter a fratura irreversível que a continuada polarização pode determinar. A trajetória é conhecida. Quanto mais acentuada for essa polarização e quanto maior a perda dos que a sentem na base inferior maior é a probabilidade de que muita gente não tenha nada a perder, sobretudo do ponto de vista do horrível conceito de que nós economistas usamos e abusamos, o custo de oportunidade. O custo de oportunidade dos deserdados da vida e de um futuro inclusivo é muito baixo. Têm muito pouco a perder e, por isso, estão fortemente recetivos em entrar em derivas sociais e de convivência como as que Trump instigou regularmente. Esse American Divide está hoje em cima com a devastação social da crise pandémica, agravando o que já estava à beira do abismo da fratura irreversível.
A nova Administração vai ter seguramente os seus erros. Mas os EUA continuam pelo menos aparentemente a não ter quaisquer dificuldades em prosseguir o seu endividamento (porque o mundo aí coloca a avalanche de poupança que existe). Tanto quanto as taxas de juro de longo prazo o anunciam, ainda por muito tempo próximo do “zero lower bound”, será tempo para a política fiscal e a política monetária não cometerem o erro da timidez do estímulo económico da administração Obama. A fratura social não se combate apenas com a retórica do discurso e nem sequer apenas com emissão de papel. É na despesa pública que está a saída, otimizada claro está e o mais racional possível. Não esquecendo que Biden tem de compensar alguns aspetos desastrosos em que a deriva de Trump deixou a economia americana. Talvez por isso os espíritos do mercado bolsista se tenham associado ao conforto do regresso da decência.
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