(Um artigo de opinião de Anne Helen Petersen no New York Times (link aqui) de já há alguns dias e que ficou perdido na fila das referências preenche-me o vazio de uma noite pouco inspirada. Afinal um tema que me tem fascinado nestes tempos tenebrosos de confinar meio a brincar, meio a sério, pois receio que seja mesmo nisso que entraremos a partir da meia noite…)
Nos tempos mais recentes anteriores à pandemia, escreveu-se muito sobre as empresas ágeis e flexíveis e sobre o chamado escritório flexível. Por exemplo, a McKinsey dedicou ao tema alguma pesquisa. Mas o tema era então discutido sobretudo na perspetiva e interesse do empregador e da empresa. As novas condições impostas pelos confinamentos pandémicos, que os há para todos os feitios e rigores de exigência, vieram transformar radicalmente a chamada revolução da flexibilidade. O trabalho à distância e o teletrabalho emergiram bruscamente como solução de recurso para tempos simultaneamente tão difíceis e estimuladoras da criatividade. Os meses têm-se sucedido um atrás de outro e pelo ar dos nossos dias e pela crueldade dos números facilmente se percebe que irão prolongar-se ainda mais algum tempo.
Não é da minha perspetiva que quero falar do assunto. Se o fizesse nessa perspetiva mais pessoal deixar-vos-ia uma reflexão viciada e enviesada. Tenho um trabalho privilegiado para exercitar até à exaustão o teletrabalho. Disponho de condições ótimas para o fazer, em duas casas, com cem quilómetros de distância entre si, que dá para arejar e mudar de ambiente. A diferença consiste entre usar rede de fibra ou hotspots de internet móvel e ao contrário do que imaginaria as diferenças de condições não são muito diferentes, ambas satisfazem bastante.
Importa sobretudo falar do assunto na perspetiva dos trabalhadores que mais sofrem com o dia a dia da então normalidade e nesse grupo estão indiscutivelmente as mulheres. A pressão horária da comutação casa-emprego-casa, a lufa de levar e buscar meninos e meninas às suas ocupações escolares, por vezes os longos tempos de viagem e a pressão do transporte público ou as longas filas de espera na viatura própria são vicissitudes comuns a muitos trabalhadores, mas temos de convir que a mulher acrescenta na grande maioria dos casos a essas vicissitudes a das próprias e extenuantes tarefas domésticas. E não esquecendo o acompanhamento escolar dos filhos. Não é por acaso que os efeitos de maior desigualdade provocados pelo ensino à distância em miúdos com mães com qualificações mais baixas.
Acredito, por isso, que entre a esmagadora maioria dos que declaram em inquéritos de opinião estarem fartos do teletrabalho o fazem não para regressarem ao escritório (o artigo de Anne Helen Petersen chama-se “Are you sure you want to go back to the office?”) mas para poderem falar com gente sem restrições, por outras palavras para poderem gozar a ambiência da vida, precisamente fora do escritório e não para ele regressar exatamente nos mesmos e condições em que o faziam antes.
Existe pois um vasto mundo de possibilidades para pensar o escritório flexível não na perspetiva dos empregadores e das empresas, mas pelo contrário na perspetiva dos que nele trabalho em difíceis condições de vida.
O artigo de Petersen é de uma grande sensibilidade nessa matéria, abrindo interessantes pontos de reflexão, que podem revolucionar o tema das comutações casa-emprego, as condições de descentralização das instalações de escritórios com alguma dimensão e sobre o domínio da organização do trabalho por quem trabalha. Pois convém distinguir entre um modelo de teletrabalho imposto pela pandemia, com todo um outro conjunto de restrições a exercer a sua influência, e um modelo de teletrabalho organizado numa sociedade com a pandemia controlada.
E acabo citando a própria Anne Helen Petersen: “(…) o atual equilíbrio trabalho-vida – do tipo que decorre do sistema de saúde e da possibilidade para algures no tempo alguém se reformar – deve ser para todos e não apenas para programadores e web designers. O poder de negociação de um sindicato de certo modo antiquado ou de algo mais radical como o Rendimento Básico Universal deve libertar os trabalhadores para exigir mais. Não necessariamente mais dinheiro. Mas uma flexibilidade genuína para tornar o trabalho secundário”.
Sem comentários:
Enviar um comentário