Anne Igartiburu e Ana Obregón - Las Campanadas de TVE 1
(Por razões de acaso circunstancial acabei na prática por ter duas entradas em 2021 e o Concerto de Ano Novo em Viena, dirigido por Riccardo Muti, traz-me uma ideia de esperança na cultura. Explico-me.)
As restrições de mobilidade de fim de ano, para além de terem impedido a viagem para Seixas, levaram o casal Figueiredo a uma passagem de ano a sós, acompanhada à distância por zooms e telefonemas para manter o ânimo e a ligação com os que nos são mais próximos.
E obviamente que em circunstâncias desta natureza a televisão é sempre um instrumento para matar o tempo até às badaladas. O zapping pela televisão portuguesa foi deprimente, da pública à privada, particularmente na pública em que um programa humorístico de qualidade mais ou menos indigente pretendia entreter o espectador até ao tratamento das badaladas. Daí ter caído na TVE 1, onde um programa musical em que se destacava o nome de Chenoa trazia ao écran vários nomes do pop espanhol, que me pareceu uma solução mais sensata do que o humor indigente para acompanhar a esmagadora maioria dos que se mantinha respeitosamente em casa. Quando a passagem de ano acontece em Seixas, com acesso a toda a rede da televisão espanhola, há sempre a curiosidade de acompanhar a Antena 3, em que se destaca normalmente a audácia coreográfica e de alta costura da apresentadora Cristina Pedroche (vejam este ano a ideia do resguardo acolchoado tipo nórdico e a ousada criação de Pedro del Hierro). Este ano não havia Antena 3, pelo que me pareceu sensato ficar pela TVE 1, até porque as célebres campanadas espanholas a partir da Puerta del Sol em Madrid merecem sempre uma visita. Por isso, antes das entradas portuguesas 00.00, passei pelas entradas espanholas às nossas 23.00, que de certo modo é uma metáfora do cidadão transfronteiriço quando paro por Seixas.
Para as campanadas, a TVE 1 anunciava duas Anas a partir da Puerta del Sol, a sóbria Anne Igartiburu e a recém-saída do luto do seu filho Alex de 27 anos, que não resistiu ao cancro, Ana Obregón, uma figura incontornável do meio artístico espanhol, da televisão ao cinema passando pelas revistas cor-de-rosa tipo Hola. Não me arrependi. De luto branco, Ana Obregón ofuscou praticamente Anne Igartibuu que soube dar o palco à companheira, numa Puerta del Sol praticamente deserta, apenas com o material da TVE. Numa mensagem simples, comovente, conseguiu com muita sobriedade e sentimento combinar a mensagem da proteção com o respeito pelas normas sanitárias com uma palavra de esperança a partir da homenagem ao filho desaparecido, e o apelo ao financiamento da ciência e da luta contra o cancro. Os espanhóis podem ter uma atração pela carnificina, como se pressentiu na matança da Torre Bela, mas nestas coisas das mensagens simbólicas não brincam em serviço. Em simultâneo, com imagens virtuais, o espaço da Puerta del Sol era ocupada por vídeos mensagens enviados de toda a Espanha. Num confronto doloroso para a nossa autoestima, uma hora depois tínhamos de aturar o inenarrável Malato deslumbrado com o foco de artifício da Madeira e a fazer perguntas também inenarráveis aos funchalenses que por ali passavam. E enquanto que na TVE 1 o espetáculo musical prosseguia, na RTP 1 o Herman José explorava figuras requentadas que começam a não interessar nem ao Menino Jesus. Valeu que entretanto o zoom familiar se sobrepôs e o écran televisivo foi ignorado para nos focarmos no écran do computador e na galeria do Zoom.
(Riccardo Muto a dirigir a Filarmónica de Viena)Entretanto, já com 2021 entre nós, o Concerto de Ano Novo em Viena prometia beleza e elegância, dirigido por Riccardo Muti, quase nos seus 80 anos, com a Musikverein, preenchida por uma orgia de flores, mas vazia de público. Todos os relatos que pude reunir falam de um concerto memorável, que me tinha parecido também espantoso, sobretudo pelo facto de nas condições adversas da ausência de público Muti ter conseguido transportar a Filarmónica de Viena para uma prestação notável, fruto talvez da empatia que existe já há muito tempo entre a orquestra e o maestro italiano. A direção de orquestra de Muti é de uma delicadeza gestual inexcedível, parecendo em alguns momentos que se limita a acompanhar o desempenho da orquestra para rapidamente se concentrar num instrumentista. Numa solução tecnológica ainda bastante imperfeita, já que tem de gerir o delay das mensagens virtuais enviadas por vídeo, pelo menos em dois momentos foi possível juntar à transmissão televisiva as palmas de cerca de 7.000 espectadores distribuídos por todo o mundo (Portugal representado por um jovem que apareceu no lado superior esquerdo da galeria).
No seu estilo pausado mas muito incisivo, Muti aproveitou a habitual alocução do maestro para pedir aos políticos e governantes de todo o mundo que não abandonem a cultura e para passar a mensagem da missão da música como instrumento de esperança e de paz. Nunca tinha escutado uma Valsa do Imperador tão sentida e o Danúbio Azul soou diferente nestes tempos por que passamos. E a Marcha Radetzky de Pai Johann Strauss, que costuma no fim de concerto animar os fleumáticos e endinheirados vienenses, soou desta vez como uma metáfora destes tempos, as palmas não estavam lá, até porque as dificuldades tecnológicas não conseguem colocar em sincronia com a música as palmas virtuais de todo o mundo.
De qualquer modo, esperança para 2021 e a cultura e a beleza como lenitivos.
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