quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

NÃO DESRESPONSABILIZEM OS ELEITORES!

 


(Anda para aí uma campanha defendendo os eleitores que votaram Ventura, porque coitadinhos queriam manifestar-se contra certas coisas ou contra o regime e só encontraram no Dito proteção e acolhimento. É preciso de uma vez por todas desconstruir a ideia de que em democracia só os políticos e as instituições devem ser responsabilizados. Explico-me porquê.)

            Sou dos que não perco tempo em chamar nomes feios aos eleitores de Ventura. Anda para aí uma ladainha de que são votantes antissistema e outras coisas que mais e que os democratas não os devem guetizar e classificar de fascistas ou coisa pior. Quando ouço falar em antissistema lembro-me sempre das bandas do futebol e fico imediatamente incomodado. E não me esqueço que a democracia quando genuína é um sistema tolerante, até permite que vão a votos os que querem derrubá-la.

A democracia funciona e tende a reduzir as suas derivas ao mínimo quando todos os elementos que fazem parte do sistema têm comportamentos decentes e prestam contas, quando são “accountable” como dizem os anglo-saxónicos. Sabemos como os políticos estão sob a mira dos populismos mais assanhados que, entre os traços mais comuns do seu comportamento por todo esse mundo fora, manifestam a deliberada intenção de descredibilizar as elites e os políticos estão nesse grupo. Em contraponto, instalou-se a ideia de que os eleitores têm sempre razão. Ora, há eleitorados argutos, sensatos e inteligentes e outros nem por isso. Ou seja, em democracia os eleitores são tão responsáveis como os políticos que elegem. Não esqueçamos que os eleitores escolhem os políticos para os representar na resolução dos problemas de um país e na busca de soluções para maximizar a sua felicidade e condições de vida. Mas não o fazem em abstrato. Fazem-no em função das qualidades que pressupostamente atribuem aos seus candidatos e em princípio em função das ideias e programas que os candidatos submetem aos seus eleitores potenciais para os transformar em efetivos. A responsabilidade do eleitor não acaba no dever de participar. Alarga-se às escolhas que faz.

O candidato Ventura é dos que não engana quanto ao que vem. A sua mensagem e estilo de pessoa são claros, não oferecem dúvidas a ninguém. O eleitor médio pode ser irracional mas tem uns dedos de testa para perceber quem é Ventura. Por conseguinte, não me venham com a balela de que os 400.000 e picos eleitores de Ventura não votaram identificados com as características do candidato e com as ideias expressas de modo tão direto e veemente. Ontem, já se falava dos trânsfugas autárquicos que cheiram em Ventura poder. Mas as autárquicas ainda nem aconteceram. Na votação presidencial, partindo do princípio de que os eleitores devem tão responsabilizados pelas suas escolhas como os políticos pelas suas ações desviantes, aqueles 400.000 e picos eleitores votaram nas características do senhor Ventura e no que ele promete fazer ou destruir. Ponto. Não me venham com subterfúgios e desculpas de que os coitadinhos não tinham representação no espectro político. Não existem ainda estudos suficientemente finos dos resultados de domingo para explicar. Olhando para o que se passa por esse mundo, e de facto Portugal não é uma ilha isolada como Salazar pretendia que fosse, há um eleitorado de direita que só por conveniência se acolheu nas saias da chamada direita social e social-democrata. Ventura preenche esse espaço. E pergunto-me como é que partidos de tradição democrática, social-democrata ou social de raiz e convicção, podem dar resposta ao eleitorado que se revê nas características e nas ideias de Ventura e com ele se confunde? Alguém me responde a isto? Basta estar atento ao que se passa em Espanha. Não perceberam ainda que a tentativa do PP de seduzir o agora eleitorado do VOX lhe saiu mal? Há um princípio básico que explica isto: pelo mesmo preço não se prefere a cópia ao original!

Podem dizer-me que há gente enganada, e que um dia cairão em si. A flutuação do eleitorado no interior dos limites democráticos é normal e isso acontece bastante no eleitorado urbano nacional. Mas quando as migrações passam as linhas do jogo democrático essa flutuação adquire uma outra natureza e não a podemos olhar com a mesma condescendência. 

Alguém dizia, creio que foi o Ricardo Costa, que as intervenções de Carlos César, de Rui Rio e de Francisco Rodrigues dos Santos mostraram à evidência que não compreenderam nada do que se passou na noite eleitoral. Em parte acho que tem razão. Mas, pior do que não compreenderem é ignorarem a responsabilização do eleitorado. A mensagem de Ventura é clara de mais para poder ser interpretada como uma luz que encandeia. Os cerca de 400.000 eleitores identificaram-se com essa ideias e características e isso é que me preocupa quanto ao estado da sociedade portuguesa em termos de valores democráticos. Ou seja, para muita gente, a democracia é meramente instrumental e não um conjunto de valores em que acreditamos. Esse é que é o perigo.

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