(The Economist)
(Cinquenta anos separam dois factos políticos consumados de extremo alcance: o voto de outubro de 1971 no parlamento britânico de aprovação da adesão europeia e a concretização do Brexit no fim de 2020. Nos próximos tempos vai falar-se intensamente de geoestratégia associada a esta decisão, o que não deixa de ter a sua ironia quando o país mergulha em mais um lockdown determinado pelo agravamento da crise pandémica apesar do início da vacinação.)
O Economist de 2 de janeiro concedia como era expectável uma larga atenção ao modo como o Reino Unido perceciona o futuro pós Brexit, no meio de um forte agravamento da crise pandémica com encerramento de escolas e outras formas de confinamento mais duro. Sabemos como o incauto Cameron se deixou apanhar na armadilha do referendo. Sabemos também que a força eleitoral do LEAVE foi essencialmente construída em função de dois blocos de argumentação, qual dos dois o mais duvidoso.
Por um lado, o desejo de recuperação de soberania política, alicerçada na máxima muito comum aos populismos “We will be great again”, pincelada com traços dourados de regresso imperial. Sondagens mais recentes concluem que 48% dos britânicos defenderia hoje o REMAIN contra 38% de LEAVE e 38% em setembro passado afirmavam que o Reino Unido devia abandonar as suas pretensões de ser um poder relevante no mundo de hoje contra 28% que continuavam a acreditar nessa mensagem.
Por outro lado, sob a montagem de que o aprofundamento da construção iria injetar carradas de imigrantes no Reino Unido, acenando com outra bandeira costumeira dos populismos, o medo e a rejeição do outro, quando esse outro é diferente e não partilha a nossa cultura e costumes. Nesta matéria, trouxemos recentemente a este blogue reflexão de Simon Wren-Lewis segundo a qual paradoxalmente desde o referendo a imigração aumentou ligeiramente mas à custa da imigração com origem fora da União Europeia enquanto que esta diminuiu.
(https://www.youtube.com/watch?v=rvYuoWyk8iU)
Sem perder de vista que uma separação tem sempre que ver com as duas partes e que a União Europeia não pode fazer figura de virgem santa e imaculada, vem-me à memória aquele episódio delicioso do Yes, Minister em que o alto funcionário Sir Humprey Appleby (o espantoso Sir Nigel Hawthorne) dissertava sobre a política externa britânica perante um estupefacto Ministro James Hacker. Dizia Sir Humprey com aquela saudosa ironia que o Reino Unido tinha entrado na União para melhor a destruir, colocando uns contra os outros como tinha feito regularmente na história e que dessa orientação se fazia a política externa britânica.
Sabe-se que Thatcher adorava aquela série, por isso tenho dificuldade em esquecer a sua ficção, apetecendo-me um dia destes desopilar com a visualização de alguns desses eternos episódios.
O acordo comercial Reino Unido – União Europeia foi concretizado in extremis sobre a linha, com aspetos simbólicos que do ponto de vista do Reino Unido são difíceis de compreender a não ser nesse plano de recuperação do poder de outras eras. Assim, por exemplo, o aspeto crítico das pescas só nesse plano pode ser compreendido porque menos de 1% do PIB britânico correram o risco de bloquear as negociações, comprometendo o acordo (o mesmo não poderá dizer-se para alguns países da União), quando toda a parafernália dos serviços e dos serviços financeiros em particular ficou de fora do acordo. Ficaram também de fora os aspetos nevrálgicos da política externa e da defesa, nos quais o Reino Unido parece querer apoiar-se em diferentes bases, como a Commonwealth, a presença na NATO, acordos específicos com a França e a Alemanha e o próprio G-7 que liderará em 2021 para fortalecer uma geoestratégia de recuperação da sua influência.
Neste contexto, o Economist interroga-se sobre qual poderá ser o papel do Reino Unido no mundo global de hoje, o que será sempre fruto da interação entre o que politicamente o Reino Unido quer ser e o que a dinâmica da conflitualidade de poderes na economia global lhe permitir que seja.
Parece indiscutível que o papel do Reino Unido no Atlântico Norte, mais propriamente na interligação atlântica entre a União Europeia e os EUA, marcava indelevelmente a sua presença na União, representando aparentemente uma situação de win-win para esta última e para o Reino Unido. O que ad contrario significa que temos hoje uma situação clara de lose-lose. Pude, assim, confirmar em termos profissionais a importância que algumas “regiões” inglesas atribuíam à sua participação no Arco Atlântico europeu. Não é fácil antever como esse vazio será preenchido com a saída do Reino Unido com a União. Claro que o Reino Unido pode continuar a manter esse relacionamento com os EUA e o Canadá mas não o fará mais em nome da interação com a União, já que serão necessários alguns anos para que aproximações diplomáticas dessa natureza entre as partes agora separadas possam ser concretizadas. Portugal pode ter algumas aspirações nessa matéria, com os Açores a poderem assumir alguma importância nesse desígnio, mas falta-lhe dimensão para preencher plenamente esse vazio.
É verdade que o Reino Unido tem revelado recentemente alguma agilidade comercial com alguns acordos com potências económicas instaladas (Japão) ou emergentes (Turquia) e que na área da investigação científica e farmacêutica o seu papel central na Aliança para as vacinas Covid-19 já ninguém lhe pode tirar. Mas é curioso que o Economist equaciona como cenário possível um papel similar ao que um pequeno país como a Dinamarca desempenha neste momento, o que me parece desproporcionado em baixa face ao que o Reino Unido pode representar no mundo de hoje. O que me parece paradoxal é que uma grande parte do potencial para o Reino Unido se afirmar neste novo contexto é protagonizado por personalidades e instituições de dimensão claramente mais cosmopolita do que o daqueles que votaram LEAVE, o que não deixa de ser uma profunda ironia.
Mas acho que o Economist vai ao fundo da questão quando alerta para que a ideia de um posicionamento do Reino Unido mais estratégico no mundo é indissociável da sua situação interna. E, nesta matéria, o Reino Unido vai sair bastante alquebrado da crise pandémica e, pior do que isso, com riscos sérios de desintegração, que pode ir no pior dos cenários ao encolhimento para o reduto da Inglaterra, ou com uma Britânia amputada da Escócia e sabe-se lá de Gales. Já não falo da Grande Irlanda.
Não é por influência de THE CROWN, a que inequivocamente me rendi, mas não me custa imaginar que tudo isso possa acontecer coexistindo com a sucessão de Isabel II.
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