(Sky in Red, 2011, Thomas Kremer)
(Nem a voz cristalina de Joni Mitchell dos seus Early Years conseguiu recuperar-me do abalo. O artigo de Isabel do Carmo no Público bateu-me forte. Sobretudo quando é a Isabel do Carmo e não outra pessoa a escrevê-lo.)
Vários tweets de gente que vale a pena seguir e o meu filho Rui alertaram-me para o artigo de Isabel do Carmo no Público. Confesso que tinha visualizado o título, seja no on line, seja no papel que chega alguns dias a casa, mas não o tinha lido. Aqueles alertas fizeram com que o lesse e fiquei atordoado.
A experiência de Isabel do Carmo vivida no Hospital Santa Maria tão mediatizado nos últimos dias pela impactante imagem das filas de ambulâncias esperando agora por um outro modelo de triagem é uma experiência total, minuciosamente descrita através dos seus estádios progressivos até à entrada na máquina covidária de resposta aos diferentes tipos de perigosidade das infeções. Não é por acaso que a médica e professora de nutrição refere que teria trocado sem hesitação o tempo de espera que teve nas condições em que esteve por uma espera dentro de uma das ambulâncias em fila de espera.
O testemunho sobre o túnel em que esteve, com a sua descrição da máquina competente e funcionalmente diversificada que lhe salvou a vida, impacta-nos profundamente. E isso acontece porque ficamos com a perceção de que não foi a médica e professora Isabel do Carmo que foi assim atendida, uma das nossas, mas foi a pessoa como muitas outras que são hoje atendidas com a máxima competência possível para os recursos disponíveis. Infelizmente, o artigo não vai ter a divulgação e o impacto que merecia, especialmente porque a inteligência de muitos portugueses só consegue aguentar mensagens de poucas linhas em qualquer rede social ou algum meme mais escabroso e sobretudo daqueles com ar mais picaresco e “antissistema” como agora estupidamente se diz. Já muita gente não consegue diferir um artigo de opinião e sobretudo porque o nome Isabel do Carmo já não diz nada a muitas gerações.
Ora, é impressionante quando concluo que o impacto daqueles parágrafos já não foi o mesmo quando pelo menos na SIC Notícias a Isabel do Carmo foi entrevistada. Claro que já não era novidade como a que o artigo suscitara. Há coisas que só passam e atordoam com a gravidade da palavra escrita. É vulgar ouvir dizer-se que uma imagem vale não sei por quantas palavras. Mas há coisas que só a gravidade da palavra escrita nos consegue atordoar e aquela descrição do túnel tinha de obedecer à palavra escrita.
Como dizia há pouco, o testemunho de Isabel do Carmo não é de uma pessoa qualquer. Quis a ironia dos astros que ela e Carlos Antunes o seu companheiro de vida e de transgressão revolucionária vivessem simultaneamente aquela experiência, o segundo perdendo a vida nessa travessia, resultado de um quadro clínico de base mais desfavorável à partida. A experiência dos dois é simbólica de muitas coisas que caracterizam a sociedade portuguesa. Entre outras coisas a capacidade que ela teve de integrar e valorizar protagonistas de derivas revolucionárias e violentas, contextualizadas é certo, mas revolucionárias e violentas. Por isso, a sensibilidade do seu testemunho adquire ainda um significado mais profundo e impactante.
Na origem de toda esta experiência esteve uma simples confraternização de Natal de média dimensão, provavelmente num momento de suspensão e trégua com as regras de segurança mais elementares. O atordoamento a que me refiro resulta também do facto de muitos de nós terem tido as suas experiências de confraternizações de Natal contidas e de média dimensão e com múltiplos padrões etários, pelo menos de três gerações, avós, pais e filhos, com ou sem colaterais.
Por fim, uma linha ou duas para confirmar o que já sei de há muito tempo, é essencialmente a escrever que recupero melhor dos atordoamentos, como agora.
Fiquem bem.
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