(Se há matéria em que as agendas mediáticas focadas na putativa má utilização de Fundos Europeus em Portugal adoram patinhar é a da formação contínua de ativos. Com frequência são invocados fraudes e outros desvios do início da nossa integração europeia, como se tais casos tivessem assumidos proporções bíblicas e que perduram no tempo ao longo de sucessivos períodos de programação. Com alguma proximidade a estas matérias, entendo essas agendas como algo de patético, mas identifico no modo como Portugal se posiciona face à formação contínua muita bipolaridade, para não falar em alguns exemplos de esquizofrenia. Afinal, todo o bicho careta fala dos pressupostos desperdícios da formação, mas o que os números nos dizem é que ela é manifestamente escassa. Ou seja, fazemos pouca formação e ainda assim fortemente estigmatizada. Não será altura de consertar a coisa?)
Sempre que se fala de má ou viciada utilização de Fundos Europeus, a estigmatização da formação contínua de ativos vem à baila, como se estivéssemos perante uma reação pavloviana. Penso que cheguei a referir neste blogue o caso por exemplo de uma Circulatura do Quadrado em que o próprio Pacheco Pereira vogou ao sabor da narrativa estigmatizante, trazendo para o discurso os célebres casos do início da integração europeia. Podem entretanto dizer-me que estou a tapar o sol com uma peneira. Não partilho a ideia de que a formação profissional cofinanciada seja o melhor dos mundos da pureza de investimento. Vários fatores contribuem para esta minha perspetiva mais matizada, mas que recusa totalmente essa estigmatização.
Como é óbvio, a formação cofinanciada com subvenções não reembolsáveis pode reduzir a propensão das empresas e dos indivíduos para encarar a formação como algo que exige retorno do investimento realizado (em tempo e em custos diretos inerentes à participação na formação) como qualquer outro investimento. É de graça e em alguns casos é acompanhado de bolsa e por isso pode haver a tentação de desvalorizar a necessidade, a utilidade e o retorno do investimento pessoal, de empresa ou organização nessa formação.
Depois, existe uma coisa que se chama oferta de formação contínua, instituições públicas e empresas que foram adquirindo ao longo do tempo uma grande expertise no modo como se identificam os instrumentos de apoio e como posteriormente se vai à procura da procura dos formandos para protagonizar o preenchimento dos cursos de formação. A oferta de formação não é um problema em si, ela tem obviamente de existir e ganhar competências como qualquer outra atividade. O problema é que num modelo em que a procura tem dificuldade em explicitar-se, acaba por ser a oferta que domina, impondo uma padronização determinada pelos seus interesses e não pelas necessidades da procura, tanto mais que esta não é obrigada a investir (na formação cofinanciada) para fazer formação.
Este é o problema central do nosso sistema de formação. Dificuldade de manifestação da procura revelada e excessiva padronização da oferta. Mas daí a ser um antro de desvario e desperdício vai uma longa distância.
E a bipolaridade emerge claramente quando nos apercebemos que os resultados anuais produzidos pelo sistema de formação (sistematizados pelo GEP do Ministério do Trabalho e da Segurança Social) nos revelam uma baixíssima presença das atividades de formação contínua, seja ela perspetivada do lado das empresas ou do lado dos trabalhadores.
Estimulado por uma notícia do Expresso Diário, fui trabalhar os dados dos Relatórios Anuais de Formação Contínua no período 2012-2019 (por conseguinte ainda sem os anos de pandemia) e perceber como está a evolução do peso das empresas e dos trabalhadores que realizam ações de formação ou atividades educativas ou que asseguram compensações por não o fazer.
O panorama que está sistematizado no gráfico que abre este post e pela imagem da tabela acima não é nada animador.
A percentagem do total das empresas que declara atividades de formação é baixíssima e está em decréscimo de 2012 para 2019. O panorama é totalmente diferente nas grandes empresas (entre 250 e 500 trabalhadores e com mais de 500 trabalhadores). A esmagadora maioria destas empresas declara atividades de formação. O setor de atividade com maior percentagem de empresas a declarar formação é o setor da farmacêutica (pour cause, obviamente).
A percentagem de trabalhadores que declara estar em formação ou em atividades educativas tem oscilado para baixo e para cima em torno de um pico de 40%. Também aqui se verifica o enviesamento a favor das grandes empresas: mais de metade dos trabalhadores destas empresas declara atividades de formação. E o setor com desempenhos mais elevados é sempre o da “Eletricidade, gás, vapor, água quente e fria e ar frio”.
O problema está identificado e corresponde ao conhecimento que tenho tido de oportunidade de acumular ao longo da minha vida profissional. A questão da formação contínua é sobretudo um problema nas empresas com menos de 250 trabalhadores, ou seja a esmagadora maioria do tecido empresarial português. A criação de condições para que a formação possa emergir como um investimento nas PME é vital. O diagnóstico é conhecido há muito tempo. A solução tarda em aparecer, seja através de formação cofinanciada por subvenções não reembolsáveis ou por qualquer outro sistema. E, mesmo nas grandes empresas, a percentagem de trabalhadores que não declara atividades de formação ou educativa é também ainda elevada.
E não esqueçamos o outro mundo da formação contínua de cidadãos não inseridos numa empresa, que poderíamos designar de formação para uma cidadania mais competente e responsável. Basta pensar na transformação digital e compreendemos com clareza esta perspetiva.
Pelo que me atrevo a dizer que o problema não é de desperdício ou de desvios. O problema é ainda de escassez e sobretudo de necessidade que a formação tem de produzir resultados, devendo ser avaliada e percebido o seu retorno. Até porque se nas qualificações iniciais e de quem chega pela primeira vez ao mercado de trabalho a melhoria é assinalável, já nos ativos empregados os défices de qualificações ainda penalizam seriamente a economia, a sociedade e a cidadania. E sim, mesmo que o populismo bacoco de João Miguel Tavares (link aqui) o impeça de ver o problema, a formação de formadores também faz parte da solução.
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