terça-feira, 31 de agosto de 2021

A RÃ E O ESCORPIÃO MARCELO, SEGUNDO BALSEMÃO

Francisco Pinto Balsemão (FPB) completa amanhã 84 anos com a publicação de um livro de Memórias e uma homenagem organizada por amigos e colaboradores próximos. Quase ao jeito de ensaio geral, foi ontem a figura de um “Primeira Pessoa” (um programa da RTP onde Fátima Campos Ferreira, apesar de alguns despropósitos, encontrou finalmente para si um espaço útil de trabalho jornalístico) muito interessante. Acima, a expressão com que saiu, completamente imperturbável, da resposta que deu a uma pergunta sobre Marcelo Rebelo de Sousa (algo em torno do porquê de ele provocar tanta confusão no meio político): “porque é que o escorpião da lenda mata a rã?”.

 

Para quem não tiver presente a dita lenda, sintetizo-a rapidamente: “Uma rã estava na beira do rio quando um escorpião lhe pediu que o deixasse ir nas suas costas para a outra margem do rio. O que a rã nega, dizendo: ‘És doido! Ferras-me o teu veneno e matas-me.’ Ao que o escorpião lhe responde que isso não faz sentido porque se a rã for ao fundo, ele escorpião, também vai; e que sentido faria morrerem os dois? A rã pensa um pouco e acaba por aceder, dizendo: ‘Anda lá’. A meio da travessia do rio, o escorpião ferra o veneno na rã, que começa a desfalecer. Na agonia, diz-lhe: ‘Que foste fazer? Não vês que assim morremos os dois? Tu próprio disseste que isso não fazia sentido!’ E o escorpião limita-se a retorquir: ‘O que queres? É esta a minha condição!’”

 

Nunca tive qualquer relação pessoal com FPB, apenas uns breves e cordiais contactos pré-negociais aquando da minha passagem pelo FIEP e da sua fase de definição em termos dos projetos empresariais que tinha ou poderia ter em mãos. Já enquanto cidadão não apreciara especialmente a sua passagem pela política, onde foi quase dois anos e meio primeiro-ministro (depois de ter sido crítico por dentro do regime anterior, fundador do PPD/PSD e ministro do governo AD de Francisco Sá Carneiro) e se lhe imputava uma indisfarçável falta de carisma; ao invés, reconheci-lhe sempre algum golpe de asa na área da imprensa e do jornalismo, onde construiu uma obra assinalável à escala nacional (do “Expresso” à SIC, nomeadamente). Pois a entrevista de ontem fez com que subisse na minha consideração pessoal, quer pela sinceridade e distância inteligente com que enfrenta quaisquer questões (mais ou menos difíceis ou ingratas) quer pela classe do posicionamento e do discurso que sempre foi revelando e produzindo.

 

É óbvio que recomendo a visualização, que nenhum desenvolvimento que aqui faça poderá substituir. Mas sempre quero salientar que não se escusou a dizer frontalmente de sua justiça sobre a “traição” de Marcelo (“ficou de não dizer nada e disse”, a propósito de uma saída do governo de então na semana anterior a umas autárquicas determinantes) ou sobre as desconfianças de Eanes. Como, embora recusando a palavra “rancor”, não deixou de considerar a hipótese de ainda poder “ajustar umas continhas um dia” em relação a alguns dos seus menos bem-amados. Como, ainda, não se escusou a reagir duramente e sem papas na língua (embora decerto também dolorosamente) em relação a Nuno Vasconcelos, o filho de um amigo fraterno e sócio fundador de vários dos seus projetos empresariais que é seu afilhado de casamento e protagonizou de modo eticamente grotesco o escandaloso processo da Ongoing; falou, a propósito, de suficiente elucidação quanto à “categoria de pessoas e de organização que aquilo é”, de “castigo moral” perante o que tem vindo a acontecer, de “tristes figuras” e de não lhe apetecer “sujar as mãos com este tema”. E muito mais foi dado a conhecer com o savoir-faire que é próprio daqueles cujo caráter e espessura de valores honram as suas distintas origens. 

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