segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O COLAPSO DO OCIDENTE E DOS SEUS VALORES

 

(As forças dos Taliban entraram em Cabul e ocuparam o Palácio Presidencial como faca em manteiga e até se deram ao luxo de contemporizar e retardar a entrada para evitar confrontos. Imagina-se o pânico no aeroporto de Cabul e suas imediações. Para mim não há metáfora mais incisiva da derrocada dos valores ocidentais que esta saída com as calças na mão. Vale a pena, mesmo assim, refletir sobre as condições e contexto que precipitaram estes acontecimentos.

Hoje de manhã, ao pequeno almoço, quando lia as últimas da imprensa internacional mais especializada sobre os acontecimentos do Afeganistão, apanhei um murro no estômago com um artigo de uma jovem afegã no The Guardian (link aqui), no qual ela dizia que teria de queimar as coisas mais importantes que construiu nos últimos anos, entre as quais dois cursos universitários que lhe abriam novas perspetivas de vida. A jovem afegã dava conta da presença nas ruas de Cabul de militares talibans e do regresso em massa às burkas e às ameaças desses militares sobre o que irá passar-se dentro de dias em matéria de presença das mulheres e das jovens nas ruas de Cabul.

Toda a comunidade internacional parece surpreendida com a rapidez com que as forças Taliban foram tomando posições nas principais cidades afegãs, sobretudo com a celeridade com que a tomada de Cabul se processou, fazendo da retirada ocidental do país uma imensa confusão na mais completa desordem. A sempre bem informada New Yorker dá conta das razões que precipitaram essa tomada de controlo entrevistando um dos mais profundos conhecedores da realidade afegã, Steve Coll, Dean da Escola de Jornalismo da Universidade de Colúmbia em Nova Iorque (link aqui). O que aconteceu foi que as forças afetas ao governo afegão fizeram um cálculo de antecipação, através do qual concluíram que não havia razões objetivas para resistir à entrada dos Talibans em Cabul. Com o anunciado abandono ocidental, entre resistir com a morte à inevitável vitória Taliban e ceder à futura repressão destes últimos, a boa lógica impôs a segunda decisão, num regresso ao passado que colocará sobretudo as mulheres afegãs num retrocesso civilizacional e num regresso às trevas.

Toda a gente já se esqueceu do acordo de Trump com as lideranças dos Talibans anunciando a retirada americana e da impossibilidade objetiva de preparar uma força militar de cerca de 200.000 a 300.000 homens, capaz de defender o governo afegão. Tudo o que foi possível conseguir foi a preparação de uma força de elite de cerca de 20.000 homens e mesmo esses terão feito essa antecipação da inevitabilidade da vitória Taliban.

Por isso, o apelo algo deslocado de Joe Biden a que os afegãos defendessem o seu próprio destino é antes de mais um quase insulto a um povo que viu chegar do exterior a raiz de todos os seus problemas, com a invasão soviética e sua posterior retirada, transformando-se em palco de confrontos político-religiosos que foram minando a já ténue hipótese de uma transição para os valores ocidentais ou pelo menos da democracia. Nos últimos tempos, em todos os possíveis e hipotéticos processos de transição em que as forças da democracia e da cultura mais ocidental se confrontaram com as forças de estados teocráticos e do mais profundo atavismo religioso foram estas que predominaram, condenando os intérpretes da mudança ao exílio, à repressão ou mesmo à morte. O Ocidente já não é o que era ou que pretendeu anunciar e os EUA vão desaparecendo do mapa enquanto guardiões dos valores ocidentais. Vejam a contradição do abandono com o rabinho entre as pernas do Afeganistão e as persistentes sanções a Cuba. Robin Wright na The New Yorker (link aqui) fala mesmo de uma retirada humilhante, que perdurará para sempre nos anais da presença externa americana (link aqui). Nos próximos tempos, assistiremos à saga do reconhecimento internacional do regime Taliban e à grande interrogação se o país vai de novo incubar sabe-se lá que novas formas do Estado islâmico.

Enquanto isso, para os que não conseguirem um avião de partida no aeroporto de Cabul, a massa imensa de pessoas que acreditou na transição para uma democracia não teocrática hibernará, na melhor das situações, para um retrocesso civilizacional, um regresso às trevas, queimando como dizia a jovem do artigo do Guardian tudo o que pacificamente tinham construído. Por cá, os ocidentais que já perderam o sentido dos valores e da sua importância continuarão entretidos a discutir se a vacinação ou as regras sanitárias interromperão a sua liberdade. Pobres de nós.

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